December 30, 2024

A arte de Gérôme fala-nos

 


O Mercado de Escravas no Cairo, de Jean-Léon Gérôme (1871)

Museu de Arte Walters, Baltimore, Maryland, EUA.


O Mercado de Escravas no Cairo, de Jean-Léon Gérôme, um orientalista, oferece um retrato detalhado e inquietante de um mercado de escravos no Egipto do século XIX. A pintura reflecte as duras realidades da época, ao mesmo tempo que satisfaz o fascínio orientalista da Europa Ocidental pelo 'exótico' Médio Oriente.

Em primeiro plano vemos as mulheres sentadas e de pé sobre um tapete, como objectos numa montra, vulneráveis, tristes, indigentes, quebradas e resignadas a um destino de que não podem fugir.  

Em segundo plano, à janela, vemos o mercador, o proxeneta. Representa a natureza transacional da cena. A sua posição elevada enfatiza o seu controlo sobre a situação. Está, como uma cão de guarda, a assegurar que as mulheres não fogem. Olha para o seu produto à venda: tem ali escravas para todos os serviços: para a força de trabalho, para amamentar, para o sexo e para outras tarefas para as quais os homens se prestam a mercantilizar a vida humana, com a mesma frieza e cálculo com que compraram o tapete em que elas se encontram. Atrás do vendedor de vidas humanas está um contador, onde guarda os papéis e o dinheiro das transações.

A cena está montada de maneira a implicar o espectador; como se nós mesmos estivéssemos a passar naquela rua e não pudéssemos desviar o olhar daquela degradação de que somos coniventes, por acção ou inacção. Obriga-nos a reflectir sobre o nosso papel na perpetuação ou oposição a tais práticas. 

Num certo sentido, o sentido de sermos humanos, somos todos coniventes, em maior ou menos grau, com o mercador: os que passam e desviam o olhar, os que negam a realidade, os que olham com inveja, os que a perpetuam com a linguagem da religião, os que compram seres humanos -desde a mais tenra infância- para o seu prazer ou ganância, os que vendem seres humanos a troco de dinheiro, os que aprovam com leis a compra e venda de pessoas com palavras de camuflagem (direitos, profissão, liberdade, etc.) da degradação das mulheres, para lucrarem indiretamente com o negócio (impostos e afins), os que o promovem nos filmes, na publicidade, nos jornais, etc.

O que mudou desde que Gérôme pintou este quadro? O domínio violento dos homens sobre as mulheres, apesar das suas lutas pela igualdade de direitos e dignidade humanas, continua mais vivo do que nunca e em alguns países, que nunca abandonaram a escravatura, está pior do que alguma vez foi. O comércio do sexo continua a ser o que sempre foi e não é nada mais nada menos do que forçar as mulheres à prostituição e escravização por todos os meios disponíveis: a toxicodependência, a pobreza, a supressão de direitos sobre o seu corpo e a sua vida, a imigração, a discriminação laboral... seja o que for, será utilizado para submeter as mulheres à luxúria e à sede de poder dos homens.


2 comments:

  1. A igualdade entre mulheres e homens é quimera. Avançámos por força das circunstâncias, por exemplo, da democracia. Mas como é que se muda a mentalidade humana (de homens e mulheres)?! O avanço veio sempre de fora para dentro, o inverso não é, ainda, verdade; e só ele é consistente. Quero crer que seja possível - se a espécie não se aniquilar a si mesma. Somos verdadeiramente burros, o animal só tem o nome, mas o homem tem a acção.
    Desejo-lhe mais 365 dias de luta activa pelas causas em que acredita, Beatriz. Com saúde. Os complementos ficam a seu cargo. Portanto, faça-se feliz sff.

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    1. A democracia, sim. Onde houve avanços houve a colaboração dos homens com as mulheres e isso só aconteceu nas democracias. Penso que as religiões são um grande impedimento à igualdade de direitos humanos e não falo apenas dos radicais, porque os religiosos 'normais' nunca falam contra o radicalismo. Pelo contrário, não os vêem como tal e aprovam-nos tacitamente.
      Obrigada por esses desejos que retribuo na mesma medida :)

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