Por isso, por exemplo, as controvérsias em torno da questão legal do aborto são difíceis de conciliar: é que a legislação, ao referir-se à gravidez, tanto fala de vida intra-uterina, como de pessoa humana, como de nascituro, como outra coisa qualquer. Acontece que estes termos designam realidades diferentes. Vida intra-uterina até pode ser um tumor no útero: as células tumorais estão vivas e estão dentro do útero; uma, duas ou mil células de um nascituro não constituem pessoa humana, nem um ser humano, mas são vida intra-uterina; pessoa humana designa alguém que já nasceu; o nascituro tanto designa o zigoto, como o blastocisto, o embrião ou o feto, que são realidades muito distintas de pessoa humana. Porém, nas palavras da lei, é tudo uma confusão e usam-se os termos indiferenciadamente, apesar de se saber que pessoa e embrião ou feto não são sinónimos, ninguém chama às pessoas humanas, portanto, já nascidas, embrião ou feto. Ninguém diz a uma mãe ou pai de um bebé ou criança: 'olhe, traga o seu feto à consulta de pediatria amanhã'.
Na questão da disciplina de cidadania, a discussão prolonga-se, em parte, porque a constituição e as suas leis foram escritas por advogados que não usam a linguagem para clarificar mas para confundir.
Neste excerto de um dos artigos que li sobre o tema, diz-se,
Tem sido usada a posição do Tribunal Constitucional (TC) sobre a matéria para veicular a urgência de uma revisão dos conteúdos da disciplina. É nesse quadro que se inscrevem as palavras recentes do primeiro-ministro, Luís Montenegro, sobre retirar o peso ideológico da Educação para a Cidadania.
Observa-se que o TC considerou que as normas da Lei n.º 38/2018, que promovem o direito à autodeterminação da identidade de género e expressão de género no sistema educativo, poderiam estar a violar o princípio de não programação ideológica da educação, conforme o artigo 43.º da Constituição Portuguesa. Este artigo estipula que o Estado não pode programar a educação de acordo com diretrizes filosóficas, políticas, ideológicas ou religiosas. O Tribunal entendeu que, ao promover uma visão específica sobre identidade de género, o Estado estaria a impor uma ideologia nas escolas, o que seria inconstitucional, especialmente no caso de escolas privadas, onde o princípio da liberdade de ensino é protegido.
Vejamos: não existe educação sem directrizes filosóficas e políticas e, mesmo que só indirectamente, ideológicas ou religiosas. O ensino português é dirigido pela cultura greco-cristã europeia, isto é, é dirigido por princípios filosóficos de liberdade, de respeito pelo conhecimento científico, pela individualidade da pessoa, de respeito pelas diferenças, etc. Politicamente é dirigido pelo princípio do respeito pela democracia, pela justiça e pelas leis. Indirectamente é dirigido pelos valores da religião cristã que estão impregnados na nossa matriz cultural. Portanto, uma educação livre de qualquer acordo com uma influência filosófica, política e religiosa, não é possível.
Outra coisa diferente seria dizer que o ensino público não pode ser programado para cumprir objectivos particulares de filosofias, ideologias ou religiões com intenções particulares. O ensino privado existe, em grande parte, para cumprir esses objectivos particulares, mas o ensino público serve um propósito de serviço público e não privado, de maneira que tem de manter-se imparcial quanto à escolha de ideologias políticas e religiosas de intenções particulares - com as devidas excepções, claro, porque não somos neutros nem queremos ser quanto ao ensino para a submissão a ditaduras, a fanatismo ideológicos ou religiosos, etc.
Portanto, no que respeita à disciplina de cidadania, é diferente ensinar o respeito por todos, mesmo por aqueles que são diferentes e podem estar em minoria, do que ensinar que o respeito pelas minorias deve sobrepor-se ao respeito que se deve a todos; é diferente ensinar a tolerância para com pessoas e hábitos diferentes dos nossos do que ensinar a tolerância para que uma minoria imponha os seus hábitos a todos.
Parece-me que este é o problema em causa: ensinar as crianças, desde cedo, que apesar de terem nascido biologicamente raparigas ou rapazes é normal e até bom, virem a ser de outro género social. Não é normal, quer dizer, não é a norma e não é bom nem é mau, é o que é: algumas pessoas, uma minoria de pessoas, nascem biologicamente de um sexo e dizem sentir-se socialmente de outro.
Uma coisa é ter uma educação e um país com condições para que as pessoas possam desenvolver-se em liberdade, mesmo que pertençam a minorias, outra muito diferente é ter uma educação que diz ser socialmente desejável desenvolver comportamentos x ou y e que as maiorias devem aceitar a subtracção de direitos jurídicos e submeter-se à imposição das particularidades das minorias.
Há aqui duas questões que em geral se confundem: a identidade social e a identidade sexual. O facto de o género ser uma construção social, não muda a constituição biológica da pessoa. O que muda é a sua expressão. Quando Simone de Bouvoir diz que não se nasce mulher, aprende-se a ser mulher, não está a defender que uma pessoa nasce biologicamente indiferenciada, sexualmente. O que está a dizer é que se educam as mulheres, desde a nascença, para desenvolverem certos traços comportamentais que corresponde a um ideal (não tão obsoleto como seria desejável) do que a tradição cultural considera ser desejável para as mulheres: submissão, compromisso, serviço, abnegação, etc., da mesma maneira que se educam os homens para desenvolverem certos traços comportamentais de liberdade, domínio, controlo, violência, etc., dessa mesma tradição cultural. O que significa que é perfeitamente possível melhorar a vida das pessoas e o mundo pela educação: podia educar-os os homens para o compromisso e o respeito pelos outros e as mulheres para a liberdade e a assertividade - mas essa educação mais equilibrada não altera biologicamente a sexualidade das pessoas.
Então, o Estado não tem que programar uma disciplina para ensinar que se nasce indiferenciado e que se pode ser o que se quiser. Seria como ensinar as crianças desde cedo que há poucos comunistas em Portugal, que são uma minoria e que é bom ser-se comunista.
Dito isto, dado que as políticas educativas e parentais são, em grande parte, contrárias à cidadania, a disciplina de cidadania, que ainda por cima é leccionada por professores indiferenciados que na maioria dos casos não têm conhecimentos sobre os temas que trabalham, é pouco mais que uma perda de tempo ou inutilidade.
Vejamos: os alunos andam a aprender na cidadania o respeito pelos outros, enquanto são vítimas de bullying e de violações e vêem os adultos (pais e a direcção da escola) fingirem que não vêem e até defender os abusadores; os alunos andam a aprender na cidadania a responsabilidade e os deveres para com os outros ao mesmo tempo que os pais vão à escola chamar nomes ou bater nos professores e nada lhes acontece; os alunos andam a aprender na cidadania a responsabilidade e o respeito pelo trabalho dos outros, ao mesmo tempo que sabem que os colegas que não cumpriram nenhum dos seus deveres, passam com 8 negativas e 200 faltas... enfim, os exemplos de violação dos deveres de cidadania e de violação de direitos nas escolas, são o pão nosso de cada dia e como os miúdos e os adolescentes aprendem, sobretudo, pelo exemplo, ter aulas de cidadania a ensinar uma coisa num contexto onde se pratica outra, é uma inutilidade. Aprendem, sobretudo, a hipocrisia, porque vêem que se diz uma coisa e pratica outra.
A educação para o respeitos pelos direitos humanos devia ser transversal a todas as disciplinas e uma prática corrente do ME e das escolas, em todas as suas estruturas. Quer dizer, os alunos deviam estar imersos numa cultura de respeito pelos direitos humanos, com o correspondente respeito pelos deveres humanos para connosco próprios e para com os outros - direitos e deveres de cidadania. Temas particulares desses respeito pelos direitos e deveres deviam ser abordados por professores com conhecimentos para os tratar de um modo objectivo e adequado às idades em questão. A educação sexual devia constar do currículo. Não faz sentido que os alunos não aprendam como funciona o seu corpo (alguma coisa já aprendem na disciplina de biologia ou ciência da natureza) e a complexidade da dimensão humana da sexualidade - isso é algo que alguns (poucos) abordam na disciplina de Psicologia, se a escolhem como disciplina opção do 12º ano, onde se fala do desenvolvimento psicossexual da infância, da importância da sexualidade na identidade e no comportamento humano, etc. Que alguns alunos aprendam alguma coisa, é insuficiente.
Neste momento, as crianças e adolescentes são educados nesse tema pelas redes sociais e sites de pornografia. É mau. Pessoalmente, não puxo por esses assuntos nas aulas, mas quando eles vêem à baila relacionados com um tema qualquer que estamos a abordar, não fujo deles e aproveito, sobretudo, para abrir um espaço de discussão onde se sintam seguros para falar e expor preocupações e dúvidas. O que posso responder, respondo e o quando as questões ultrapassam os meus conhecimentos, oriento-os para sites ou pessoas que podem responder.
Tenho pena que não exista um enfermeiro nas escolas ou agrupamento de escolas. Fazem muita falta. Em primeiro lugar porque actualmente há acidentes na educação física praticamente todos os dias, apesar dos professores já nem mandarem fazer exercícios de ginástica como mortais ou subir espaldar, etc. Os alunos chegam às escola sedentários de uma vida de telemóveis -nunca correram, subiram às árvores, saltaram ao eixo, rebolaram por uma encosta abaixo, nunca se atiraram para uma onda no mar, nunca nadaram, etc.- e qualquer exercício lhes provoca torções, distensões musculares e outras maleitas. Em segundo lugar, porque uma enfermeira podia atender alunos e esclarecer as suas dúvidas e dar-lhes apoio de planeamento familiar, para além de que podia fazer sessões de esclarecimento sobre saúde para a comunidade escolar.
O que nos parece a nós, professores, é que se fala muito ao lado do que importa e dos problemas da escola para alimentar polémicas e, quanto a mim, parte da responsabilidade está nos advogados que escrevem as leis sem nenhum rigor na utilização dos conceitos.
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