Entre a argumentação americana de defesa do uso de armas por crianças e adolescentes e a defesa do uso de telemóveis, redes sociais, videojogos (violentos e sexistas), substituição da leitura pela imagem, no nosso país? Nenhuma.
Hoje li, pelo menos, três artigos diferentes a defender que o telemóvel gera dependência, que as redes sociais são nocivas mas que o telemóvel deve continuar a ser usado, sendo que cabe aos professores ensinarem a usá-lo em segurança. Esta é a argumentação dos americanos para as armas: as armas não podem ser proibidas porque são muito úteis, sendo que apenas falta que pais e professores ensinem a usar armas letais em segurança.
As crianças e adolescentes viciam-se no telemóvel, sejam videojogos (sabemos que são violentos e sexistas e sabemos que a exposição à violência dessensibiliza e faz aumentar o número de comportamentos de violência), pornografia ou redes sociais de entretenimento, cheias de influenciadores sem escrúpulos, mas defende-se que as redes sociais são boas, desde que não se dependa delas e se se tenha espírito crítico.
Só que, em primeiro lugar, a petição de princípio é mesmo essa: os telemóveis e as redes sociais geram dependência, vício, nomeadamente em idades vulneráveis; em segundo lugar, o espírito crítico é algo que se aprende ao longo da vida e que depende de se ter conhecimentos e experiência de vida e nenhum destes se consegue nas redes sociais - como aliás vemos pela quantidade de adultos completamente manipulados pelas redes sociais e pela desinformação.
A questão dos telemóveis não é apenas a da segurança, da doença mental (ansiedade, isolamento, falsas representações sociais, incapacidade de ter relações saudáveis com os outros, violência e bullying, etc.) e do vício. Na escola, a questão fundamental é também a da aprendizagem.
A substituição da leitura de livros ou textos por imagens, vídeos, frases curtas e mal construídas sem os elementos de ligação lógica entre elas, destrói a capacidade de aprender, de ter um domínio mínimo sobre a linguagem (logo, pensamento), de construir ou até de perceber um raciocínio encadeado, de ter um vocabulário não-limitado a três mil palavras, a ter capacidade de concentração, a ser capaz de resistir às distracções, a saber desenvolver a imaginação (todas as ideias lhes já vêm impregnadas de imagens e filmes limitadores), a saber apresentar uma ideia, um argumento, fazer uma descrição e mil e uma outras actividades cognitivas necessárias a uma aprendizagem significativa e de qualidade.
Este ano acrescentei uma folha ao teste de auto-diagnóstico sobre hábitos de estudo, motivação, auto-conhecimento, etc., que dou aos alunos no 11º ano, sobre os hábitos de uso de telemóvel, internet, redes sociais e o impacto desse uso no estudo e aprendizagem. Como essa folha era para me devolverem, para eu ter uma ideia dos hábitos da turma, não obriguei a que se identificassem, no pressuposto que alguns poderiam sentir-se desconfortáveis em revelar esse seu lado.
Só 2 alunos não se identificaram. Em duas turmas, cerca de 60 alunos, só 7 responderam 'não', à afirmação, 'perco bastantes horas por dia, improdutivas, a jogar videojogos, ou nas redes sociais ou a ver vídeos curtos ou no youtube ou em outros sites da internet'. Tendo em conta que alguns dos que responderam 'não' se identificaram e podem ter respondido 'não' com receio que eu ficasse com má impressão deles, temos que em 60 alunos talvez uns 5 não sejam viciados no telemóvel e não percam imensas horas improdutivas, por dia, a ver entretenimento de má qualidade ou violento ou até degradante.
Sim, são duas turmas numa escola mas são resultados impressionantes. Tendo em conta que passam 6 horas por dia (às vezes mais) na escola, em aulas, isto significa que grande parte do seu tempo livre é passado a alimentar o vício dos jogos online, das redes sociais e outros sites da internet, como a pornografia, por exemplo. Não são turmas de maus alunos, são turmas razoáveis em termos de resultados, mas já são turmas que não aguentam trabalhar um texto inteiro sem intervalos para fazer um quizz, sem projecção de imagens ou outra actividade prática.
Quem quiser contrariar os factos com teorias de ser possível adolescentes e crianças terem auto-domínio e maturidade para evitar o vício das redes sociais e outros sites anti-pedagógicos e violentos, junte-se aos americanos que defendem o uso «responsável» de armas, por criança e adolescentes.
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