August 03, 2024

∞ O infinito numa poça de água

 

Nos anos que se seguiram à guerra, Escher costumava passear depois do jantar nos bosques que rodeavam a sua casa em Baarn. Passava lá muitas horas, para desanuviar a cabeça, mas também para a encher de novas ideias para trabalhos gráficos. A partir de 1951, começou a anotar as suas ideias no seu diário. Uma dessas notas desse ano diz o seguinte:

Traços de pneus de carros e bicicletas, vistos perspectivamente, na diagonal; Recanto inclinado cheio de água: poça. Nela se reflecte a lua. 

M.C. Escher, Puddle, woodcut in black, green and brown, printed from three blocks, February 1952


Escher viria a desenvolver esta ideia na xilogravura Poça de Água, de Fevereiro de 1952. Posteriormente, descreveu esta gravura da seguinte forma,
O céu noturno sem nuvens reflecte-se numa poça que uma chuva recente deixou num caminho florestal. Os rastos de dois automóveis, duas bicicletas e dois peões estão impressos no solo pantanoso.
Escreveu ao seu amigo Paul Kessler sobre a impressão,
Embora possa parecer muito impressionista para alguém como eu, a sua natureza simbólica fascinou-me à maneira de Antoine de Saint-Exupéry que, algures em Terre des Hommes, diz: une mare en relation avec la lune révèle des parentés cachées (Uma poça de água em relação à lua revela ligações escondidas)
Escher conhecia a obra do aviador/escritor francês, que desapareceu durante um voo sobre o Mediterrâneo, em 1944. O nome de Antoine de Saint-Exupéry está sobretudo associado a um pequeno livro, Le Petit Prince, mas ele escreveu mais livros aclamados. Em Terre des Hommes, apela à humanidade para que assuma as suas responsabilidades e seja solidária. Inspirado por este livro, Edmond Kaiser fundou a ONG com o mesmo nome em 1960. 

Também para Escher, o livro foi uma fonte de inspiração. Recortou a citação na xilogravura, na pequena primeira série de gravuras. Mais tarde, retirou-a do bloco. A explicitação das camadas e significados no seu trabalho de forma tão evidente não era o seu género.

O que se vê nesta imagem, depois de num primeiro olhar se ver uma poça de água ligeiramente enlameada com marcas de botas e de pneus? Da segunda vez, reparamos na cor. A areia é castanha. Escher costumava usar a tinta preta sobre papel branco mas nesta impressão capta não só a areia castanha, mas também a beleza improvável do brilho prateado da lua cheia numa noite sem nuvens. 

Para conseguir este efeito, Escher utiliza um verde muito claro. É o tipo de verde que parece cinzento a um olho destreinado e, no entanto, evoca a ilusão do brilho prateado de uma lua enorme. A lua, perfeitamente redonda, está escondida atrás dos ramos e por isso foi deixada branca. Quem não teve já a experiência de uma quieta noite de luar? Escher revela a enormidade do universo. Fá-lo à sua maneira habitual, reflectindo o brilho do luar na poça através dos ramos. 

Só quando nos apercebemos de que não estamos a olhar para a poça de água, mas para o céu através do reflexo da lua, é que a gravura adquire profundidade. A estrada de terra batida é, de facto, a moldura em que Escher capta o universo! De repente, encontramo-nos presos numa sala de espelhos onde o chão é, de facto, o céu. O que vemos é a inversão da realidade, uma exploração da eternidade.

Uma poça de água no bosque - uma ideia aparentemente simples, mas é exatamente isso que faz de Poça de Água uma gravura tão marcadamente filosófica sobre a quietude, a natureza, a reflexão e a recordação. 

Escher mostra-nos a infinitude do universo com uma poça de lama cheia de rastos como uma moldura errática.

fonte: puddle

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