August 27, 2024

Acerca da falta de professores: pôr os pontos nos is

 


O envelhecimento dos profissionais de educação, a pouca atractividade da carreira e os custos de deslocação e habitação, fez com que, de ano para ano, aumentassem os casos de escolas com dificuldades em encontrar professores para preencher os horários.

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Não há falta de professores. Andam por aí quase 30 mil professores formados e com especialização para o ensino. Estão a trabalhar em empresas. Trabalham em informática, estão em empresas de publicidade, estão a trabalhar em imobiliárias e em outros sítios. São os cerca de 30 mil professores, na época contratados, que Crato despediu nos anos da troika com o argumento de que em cinco ou 10 anos não haveria jovens a estudar em Portugal. Como se tivéssemos decidido que em dez anos deixávamos de existir como país... é o que dá pôr gente que não pensa à frente dos cargos.

Portanto, eles existem e andam por aí, só que não voltam para o ensino porque melhoraram de salário e de vida. Ontem li no jornal que segundo esta nova tutela, cativar professores não tem que ver com salário mas com mostrar a importância da carreira. Esta afirmação mostra bem a incompreensão do problema.

A carreira de professor dos Liceus, como se dizia antes, tinha importância e prestígio porque não estava massificada e era uma carreira onde os docentes podiam desenvolver actividade intelectual e criativa. Muitos escritores e artistas portugueses eram professores de escolas públicas: Irene Lisboa, Damião Peres, Pedro Homem de Melo e Vergílio Ferreira, só para citar alguns.

Esses eram tempos em que a actividade dos professores era uma actividade apenas docente com mais uma ou outra actividade escolar. Os professores tinham duas ou três turmas e muito tempo livre para estudar, escrever, investigar, criar. Há muitas colecções de livros de historia, de literatura, ensaios, etc. do século XX, muitos boas e difíceis de encontrar, escritas por professores de escolas. Muitos artistas plásticos eram professores. Hoje em dia seria impossível. Os professores têm trabalho até ao pescoço, estão soterrados em burocracias e em métricas de tudo e mais alguma coisa, em escolas transformadas em fábricas de 'dar aulas', fazer babysitting e entregar certificados. Não é só cá. Quando olhamos para França, por exemplo, os grandes nomes da Filosofia do século XX, foram quase todos professores de Liceus. Hoje-em-dia? Zero.

Portanto, a importância e o prestígio da profissão não se afirmam por decreto. Existiam na sequência do trabalho intelectual, de investigação e artístico que os professores faziam e quando o ME diz que vai recuperar o prestígio e a importância da profissão fala de modo inconsequente. Há muitos professores nas escolas, já com alguma idade, que escrevem, têm obras publicadas, faziam investigação, têm obra no domínio das artes plásticas: da fotografia, da cenografia, da escultura, etc. Agora? Zero.

Isto que se passa nas escolas, está já desde há uns anos a fazer o seu percurso nas universidades, onde os novos professores contratados têm trabalho até ao pescoço, excesso de aulas, obrigação de publicar, nem que sejam porcarias ou o mesmo trabalho superficial escrito em dez versões diferentes, todos os 3 meses: Qualquer um que leia trabalhos de mestrado e doutoramento apercebe-se da quantidade de publicações que são de baixo nível. Não porque os professores não tivessem capacidade para mais, mas porque não os deixam: os reitores querem é ter cada vez mais alunos a pagar propinas de mestrados e doutoramentos e para ter o ensino superior massificado tem de se baixar o nível dos alunos, das aulas, da investigação e dos professores. 

Hoje-em-dia seria impossível haver um Kant, que esteve 10 anos sem publicar, enquanto pensava e preparava as Críticas e os 100 livros que se lhe seguiram - ou um Newton ou um Higgs e muitos outros às dezenas, que tinham licenças sabáticas e tinham poucas aulas para terem tempo de investigar com profundidade e produzir trabalho significante.

A proletarização das profissões tem custos. Quando comecei a trabalhar os professores podiam tirar uma licença sabática por dois anos para fazer um mestrado, quando os mestrado era a sério. Agora vão ter até dez horas extraordinárias em cima do excesso de trabalho que já têm. 

Portanto, repito: quando o ME diz que vai recuperar o prestígio e a importância da profissão em vez de valorizar economicamente a carreira, fala de modo inconsequente porque a única valorização possível actualmente é mesmo a económica. A outra dependeria de criar condições que nem nas universidades já existem.

É tudo uma pena. Quando comecei a trabalhar, nos anos 80 do outro século, estávamos nesta situação de ter excesso de alunos e falta de professores: tive horários com 24 horas lectivas, só com turmas; tive turmas de 45 alunos; tive colegas que tinham acabado o 11º ano, no ano anterior e estavam a ensinar a turmas do secundário, etc. Milhares de alunos foram sacrificados nessa caldeirada trituradora e caos. Durante 20 anos, fez-se um enorme esforço para resolver o problema e resolveu-se. Aí pelo ano 2003, 2004, era muito difícil entrar na carreira de professor ou até conseguir uma colocação de professor provisório e entravam nas escolas apenas os que estavam no topo das listas de espera: professores com notas de licenciatura muito altas, com mestrados, já começavam a entrar com doutoramentos. Os alunos que saiam das escolas e depois das universidades eram muito bem vistos no estrangeiro e todos os queriam. Depois veio a burra da Lurdes Rodrigues que se gabou de sacrificar a carreira dos professores para poupar dinheiro - é o que dá pôr gente que não pensa à frente dos cargos e deixá-las destruir um capital que foi tão difícil de construir. Daí até hoje foi sempre a descambar até esta catástrofe actual. 

Estamos outra vez nos anos 80 do século passado mas com problemas maiores, como o dos alunos imigrantes cuja língua não é o português, problemas de integração cultural, problemas de indisciplina, problemas de ansiedade e depressão por conta da falta de perspectivas de emprego, da falta de dinheiro para tirar um curso superior, para alugar uma casa, etc. Muitos milhares de alunos vão novamente ser sacrificados nesta nova trituradora de caos. E não é que não haja professores. Eles existem, andam por aí a trabalhar, mas nem mortos voltarão a esta escola.

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