May 06, 2024

Que reforma da Justiça? Uma reforma alfaiate, feita à medida dos políticos?



Uma reforma da justiça para todos ou só para alguns?


António Ventinhas

Na semana passada, um grupo de 50 pessoas apresentou um manifesto que pugna pela reforma da justiça. Nesse documento, apela-se a um sobressalto cívico que leve a que os responsáveis políticos assumam as suas responsabilidades e definam como prioridade a realização de uma verdadeira reforma da justiça. Nesta matéria, todos os operadores judiciários estão de acordo. Porém, da leitura do manifesto percebe-se uma motivação que não tem um carácter geral e abstracto, mas que se encontra directamente relacionada com dois inquéritos, ainda em investigação, sendo certo que alguns dos subscritores têm como objectivo influenciar o desfecho dos mesmos.

Para além disso, na minha opinião, o manifesto não se foca nos verdadeiros problemas da justiça que afectam todos os cidadãos, mas centra-se essencialmente nos processos de algumas pessoas que exercem cargos políticos. Se o documento referido se preocupasse realmente com o tratamento digno dos cidadãos, não poderia ter olvidado a situação existente em alguns estabelecimentos prisionais portugueses.

A morosidade do sistema judicial é o principal problema que afecta quem necessita de uma decisão rápida para resolver aspectos essenciais da sua vida pessoal ou profissional. A dificuldade no recrutamento de oficiais de justiça, de magistrados e de polícias irá agravar esta realidade a curto prazo. Neste momento, há milhares de inquéritos parados por não existirem funcionários em número suficiente, mas o que interessa para algumas pessoas é que apenas dois ou três inquéritos andem rapidamente. O cidadão comum é sempre esquecido, por ele ninguém se sobressalta. O mesmo bem clama por uma decisão rápida, mas o Estado teima em não lhe dar resposta, por não alocar os meios financeiros suficientes para o efeito.

O manifesto assenta numa ideia de que a actividade do Ministério Público, designadamente aquela que pode interferir mais directamente com os direitos, liberdades e garantias dos cidadãos, não tem qualquer controlo externo. O legislador definiu, claramente, que, na investigação criminal, todos os actos mais intrusivos têm de ser previamente autorizados por um juiz de instrução criminal, ou seja, em Portugal, as intercepções telefónicas e buscas domiciliárias dependem de uma autorização de um juiz, entidade externa ao Ministério Público. A aplicação das medidas de coacção mais gravosas do que o Termo de Identidade e Residência também são aplicadas por um juiz, tal como sucede relativamente a outras matérias, como, por exemplo, a apreensão de contas bancárias.

Como é do conhecimento público, algumas das promoções efectuadas pelo Ministério Público não são acolhidas pelos juízes de instrução criminal, o que evidencia o controlo judicial, externo. O que alguns pretendem é substituir o controlo judicial da actividade do Ministério Público, por um controlo político externo que também se estenderia à magistratura judicial. Por essa razão, há quem defenda que a senhora procuradora-geral da República deveria ir ao Parlamento prestar contas relativamente a dois inquéritos recentes que ainda se encontram a ser investigados, esclarecendo, inclusivamente, alguns aspectos dos mesmos. Esta visão é própria dos tempos antes de 25 de Abril de 1974, em que o Ministério Público era controlado politicamente e em que recebia ordens para não prosseguir determinadas investigações que pudessem afectar determinadas personalidades do regime.

Questão diferente é saber se o procurador-geral da República deveria ter uma presença mais assídua no Parlamento, dando conta regularmente da actividade da instituição e dos seus problemas, bem como sugerir formas de melhorar a legislação e o sistema de justiça. Neste caso, a minha resposta é necessariamente afirmativa. Aliás, o momento próprio para a audição da actual procuradora-geral da República deveria ser no final de Setembro ou início de Outubro deste ano, por forma a mesma fazer um balanço do seu mandato e enumerar os desafios que se colocam ao próximo titular do cargo.

Por último, alguns dos subscritores do manifesto supra-referido têm pedido, insistentemente, a demissão da procuradora-geral da República. Tal acção não visa essencialmente a titular do cargo, que se encontra quase a terminar o seu mandato, mas sim condicionar toda a actividade do Ministério Público no futuro. A partir do momento em que um procurador-geral da República for demitido por investigar titulares de cargos políticos, o combate à corrupção acabou em Portugal.


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