May 26, 2024

" It is only sound that remains" Forugh Farrokhzad

 


As mulheres iranianas descendem das árvores

É desolador perceber como é que do berço de uma das mais importantes civilizações do mundo, passámos para este Irão opressor. Mas tudo tem um fim. E este Irão de agora haverá de cair um dia.

Carmen Garcia


“Mulheres e homens iranianos, apelo a todos vós, quer sejam artistas, intelectuais, trabalhadores, professores ou estudantes, dentro ou fora do país, para que se insurjam contra esta guerra contra as mulheres”

Foram estas as palavras de Narges Mohammadi, iraniana detida em Teerão desde 2021, gravadas no interior da prisão e que a família conseguiu fazer chegar ao mundo, em Abril deste ano. E foram também estas palavras, juntamente com as que usou para acusar as forças de segurança iranianas de agredirem sexualmente as reclusas, que a fizeram saber que, em breve, será novamente julgada.

Não que Narges, Prémio Nobel da Paz em 2023, não esteja habituada a julgamentos derivados de acusações ridículas. Na verdade, a sua vida tem sido um corrupio constante de entradas e saídas da prisão por insistir em defender a vida num país onde esta vale mesmo muito pouco, especialmente se em causa estiver uma mulher. Detida há três anos, e com mais 13 de pena por cumprir, por dirigir um movimento que faz campanha pela abolição da pena de morte, Narges Mohammadi tem resistido. Não sei a força que lhe resta, mas se olharmos para a fibra das mulheres iranianas, especialmente mostrada desde a morte de Masha Ahini, acredito que nem a morte a silenciará.

Lembremo-nos de Minoo Majidi, de 62 anos, que durante a manifestação “mulher-vida-liberdade”, em 2022, sucumbiu com 167 tiros disparados pela polícia iraniana. No seu funeral, todas as mulheres presentes arrancaram o hijab e gritaram por liberdade. E pouco tempo depois, uma das filhas, ajoelhada ao lado da sepultura da mãe, rapou o cabelo. E de cabeça descoberta, com o cabelo na mão e olhar desafiador, tirou uma fotografia com o olhar fixo na câmara. Esta acabaria por se tornar uma das imagens-chave da luta destas mulheres.

Já uma vez aqui o escrevi, mas estes regimes insistem em enterrar mulheres sem perceberem que elas são a semente da luta. Masha Amini, Minoo Majidi e, mesmo que enterrada de outra forma, Narges Mohammadi crescem a cada dia em legado, força e inspiração.

Temos falado muito do Irão esta semana. A morte de Ebrahim Raisi, conhecido como “carniceiro de Teerão”, tem alimentado notícias um pouco por todo o mundo. Apontado por muitos como o mais provável sucessor do ayatollah Ali Khamenei, era um homem com as mãos sujas de sangue inocente. Tão sujas que não há morte que o apague. Não nos esqueçamos nunca que este homem que nos acostumámos a ver de turbante preto (usado para indicar descendência de Maomé) foi um dos que, na década de 1980, condenaram à morte milhares de presos políticos e dissidentes do regime num verdadeiro atentado contra a vida e contra a liberdade

Eleito em 2021, numas eleições tipicamente iranianas onde muitos candidatos foram impedidos de concorrer e onde a participação de eleitores foi reduzida, candidatou-se sob a premissa de “ouvir os iranianos”. E o que fez quando chegou ao poder? Silenciou-os tanto quanto pôde.

Não celebro mortes. Recuso-me. Até o pior dos homens é sempre filho de alguém e, em respeito pelos que ficam, festejar a morte parece-me errado. Mas não consigo dizer que lamento. Não ao homem que deixou morrer uma miúda debaixo da custódia da polícia dos costumes e que ordenou à polícia, nas manifestações gigantes que se seguiram, que actuasse com firmeza e mão pesada. Essa mão prendeu 22 mil pessoas e matou 550. Não é possível lamentar a morte de um homem assim. Ou melhor, eu queria acreditar que não era. Queria acreditar que a maioria do mundo, baixinho, expiraria de alívio e escolheria o silêncio. Mas não.

E se de países como Iraque, Paquistão, Líbano, Síria (e até mesmo Turquia) já esperávamos as manifestações de pesar e as bandeiras a meia haste, outros países acabaram por me surpreender. O Brasil manifestar condolências? O México? E a NATO e a União Europeia? E não, não importa que tenham sido comunicados “secos”. Porque mesmo esses são a mais. Nações que respeitam os direitos humanos não apresentam condolências a homens como este. E nem me venham falar em diplomacia porque, neste caso, esse é um conceito vazio.

Sabem quem é que elogiou muito Ebrahim Raisi dizendo que ele era “uma pessoa maravilhosa”? Vladimir Putin. Já Maduro, de repente, tornou-se um homem de fé e veio dizer que na Venezuela desejavam “consolo divino por uma perda tão sensível”. Não fosse tudo tão ridículo e seria risível. Pessoas maravilhosas não promovem ataques reiterados aos mais básicos direitos humanos. E os venezuelanos querem é ver resolvidos os seus problemas de pobreza. Pouco lhes interessa a morte de um tirano no outro lado do mundo.

Bem estiveram o Reino Unido, que recusou lamentar a morte do Presidente iraniano; e os Estados Unidos, que, mesmo enviando breves condolências, fizeram questão de referir que reafirmavam o seu apoio ao povo iraniano e à sua luta pelos direitos humanos e liberdades fundamentais.

O Irão é um país onde a democracia veste o manto dos farsantes, onde a maioria da população vive oprimida e onde não existe sequer imprensa livre. Um país onde há relativamente pouco tempo uma jovem foi condenada à morte por enforcamento após ter sido violada. Um país que, na revolução de 1979, começou um caminho de recuos que tem sido difícil de travar.

Não tenho esperança nas próximas eleições. Sabemos que todos os candidatos que forem verdadeira oposição ao actual regime serão impedidos de concorrer. Mas tenho esperança no povo e na sua fibra e acredito verdadeiramente que vai ser este mesmo povo que, um dia, irá recuperar a sua terra de liberdade.

Por agora, lendo as notícias, vou “vendo” um bocadinho de tudo. Desde os iranianos em Londres e em Berlim que se dirigiram à porta das embaixadas do seu país para celebrar, às teorias da conspiração mais ou menos credíveis. E eu sei que, a uns quantos, dava jeito que Israel estivesse envolvido no acidente que vitimou Ebrahim Raisi. Mas, segundo a imprensa mais livre da região, o helicóptero onde viajava o Presidente iraniano não recebia peças para manutenção desde 1986, há 38 anos e, ass

É desolador, quando pensamos sobre isso, perceber como é que, do berço de uma das mais importantes civilizações do mundo, passámos para este Irão vingativo e opressor. Mas tudo tem um fim. E este Irão de agora haverá de cair um dia.

Forugh Farrokhzad, a mais importante poetisa iraniana da história, tem um poema chamado It is only sound that remains, onde pergunta: “Porque é que deveria parar? / Descendo das árvores / E deprimo-me quando respiro ar viciado / Um pássaro já morto aconselhou-me a não me esquecer de voar (…)/ Porque é que deveria parar?”

E eu sei que não devia. As mulheres iranianas sabem que não deviam. Nenhuma mulher devia alguma vez ter de parar.

No final, é saber que isso vai fazer toda a diferença.


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