May 26, 2024

Falar na discriminação ou na violência contra mulheres não é feminismo, é apelar à decência do respeito pelos direitos humanos




A cultura masculina de agressão física e psicológica contra mulheres persiste na geração dos filhos de Boaventura e, espantosamente, na dos seus netos. Uma cultura violenta, amenizada mas não extinta.

Boaventura de Sousa Santos, uma vez, tentou desculpar-se, na sequência do escândalo do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, com a idade. Assumia "actos inapropriados" que eram “naturais” no seu tempo e agora já não eram tolerados.

Há uma parte de verdade nisto. Quando Boaventura era novo, as mulheres eram praticamente propriedade dos maridos. Eram vistas como pessoas de segunda categoria em todo o lado, do trabalho às universidades (onde os professores as mandavam com frequência coser meias).

Era preciso uma resistência muito grande para fugir dos potenciais abusadores, o que envolvia uma grande quantidade de técnicas que passavam de mãe para filha, nomeadamente “não dar confiança”, para reduzir o risco. Era toda uma educação para evitar o abuso. Paradoxalmente, a manutenção da virgindade até ao casamento e a falta de liberdade sexual funcionava como uma protecção das mulheres perante a cultura dominante em muitos homens da época. Parece estranho, mas é assim.

Se a “obrigação” da virgindade oprimia as mulheres, a liberdade sexual poderia ter efeitos catastróficos numa cultura masculina altamente tóxica, nomeadamente quando havia filhos que nasciam fora do casamento, sustentados muitas vezes apenas pelas mães (e apenas educados por elas, porque o desaparecimento do pai era uma constante).

Nem se falava nesses tempos em violação — a expressão era “ele abusou dela”. No entanto, naquela geração, havia homens capazes de “respeito” — outra expressão antiga para referir os homens decentes com mais de 80 anos. Ser abusador sempre foi uma escolha.

O explorador de mulheres, no tempo de Boaventura, gozava de alta popularidade entre muitos dos seus amigos — vou excluir os homens decentes, que os havia — e gabava-se muitas vezes das conquistas, do “harém”, etc., etc. Infelizmente, essa cultura masculina de agressão física e psicológica persiste na geração dos filhos de Boaventura e, espantosamente, na dos seus netos. Uma cultura violenta contra as mulheres, amenizada mas, até hoje, não extinta.

Em Portugal não há “me too”, o que daria uma excelente tese para um instituto de estudos sociais. As mulheres não se queixam porque se tornam duplamente vítimas — no caso em que tenham uma carreira pública, por exemplo. Basta ver o que aconteceu a Bárbara Guimarães quando denunciou Carrilho por violência doméstica: um enorme prejuízo profissional e ainda bullying objectivo da juíza Joana Ferrer. A justiça acabou a condenar Carrilho por violência doméstica, mas “a namoradinha de Portugal” foi várias vezes vítima a seguir, nomeadamente através das declarações que Carrilho fez sobre a mãe dos filhos nos jornais. Como é que pode haver “me too” se o agressor conta com a complacência de um país minúsculo?

Esta semana, sete mulheres do colectivo de vítima do CES falaram com a jornalista Mariama Correia, da brasileira Agência Pública, que alguns jornais portugueses citaram. A mexicana Mariana Cabello, com 29 anos à altura dos factos, contou: “Fomos ver um documentário sobre direitos humanos. Boaventura sentou-se a meu lado. Quando as luzes se apagaram, colocou a mão na minha perna, na minha virilha (…) Ele continuou olhando para a frente, vendo o filme. Eu saí assustada.” Mariana Cabello diz que deixou de acompanhar o curso e passava o tempo no quarto. No jantar de encerramento, voltou a encontrar Boaventura. Depois de um exercício de lovebombing (uma táctica usada por abusadores e narcisistas, que consiste em elogiar desproporcionadamente a vítima, para a tentar manipular), Boaventura passa à segunda fase. “Eu estava em pé, ao lado da mesa dele. Ele, sentado, pôs a mão na minha cintura, nessa posição ficou com a cara no meu peito.” Na altura, a estudante optou por não denunciar porque “sabia que não ia acontecer nada com ele”.

Há relatos de Boaventura marcar reuniões com alunas para a casa dele, onde aparecia “vestido de robe e pijama” e “fazia comentários de carácter sexual sobre os corpos” das mulheres.

Élida Lauris estava a fazer o doutoramento em 2005, tinha 25 anos. “No último jantar em equipa em que participei com Boaventura, ele disse: ‘Você pode ter uma relação especial comigo porque, quando olho para você, quando vejo as suas pernas… Nunca fiz nada porque você era casada.” Élida passou a ter ataques de pânico.

Não, a vítima não tem sempre razão. Mas a cultura instituída neste país de não ouvir a vítima, de a tentar esquecer e menorizar, e tolerar os abusos — uma cultura ainda vigente, apesar de algumas mudanças — é de uma enorme violência contra as mulheres. Contra todas, todas, todas.

Ana Sá Lopes in https://www.publico.pt/

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