Feriado passado, 50 anos assinalados, já tudo foi recordado sobre o que não podíamos fazer antes de 1974, e sobre como aquele ano nos atirou alegremente para a vida plena de escolhas, de oportunidades e de crescimento. Terminados os festejos, e depois da palavra “liberdade” repetida até à exaustão, será que praticamos mesmo o que evocámos nas últimas 24 horas?
“Liberdade é não ter medo”, já dizia Nina Simone. A compositora, cantora e ativista pelos direitos civis das pessoas negras norte-americanas sabia do que falava, por observação de quem vivia constantemente alerta para o ataque, para o preconceito e para o julgamento infundado. Se ser livre é não ter medo, quantos/as de nós podemos dizer que o somos?
Numa crise de habitação conjugada com um padrão de precariedade, quem é que não tem medo de nunca conseguir comprar casa própria? Em Portugal os jovens saem de casa dos pais, em média, aos 29,7 anos, acima da média da UE de 26,4 anos, segundo dados do Eurostat para o ano de 2022. Este número, apesar de alto, irá ainda assim surpreender muitos dos jovens que leem este artigo, para os quais essa materialização da liberdade é ainda uma miragem.
Num contexto laboral hipercompetitivo e de relatos assustadores, quem são as mulheres que não têm medo de avançar com a maternidade e de serem prejudicadas nas oportunidades de trabalho?
Em Portugal, muito recentemente, houve professoras que não receberam aumentos salariais por terem estado ausentes por gravidez de risco e por licença de maternidade. Estas ausências totalmente justificáveis (sem que seja preciso referi-lo) levaram a que as docentes não pudessem usufruir dos novos escalões para docentes contratados, e ter atualizações salariais.
Num momento em que se envergonha e se sonda o regresso ao domínio do corpo da mulher, quem são as mulheres que não têm medo de exercer o direito a acederem à interrupção de uma gravidez?
Em Portugal, há obstáculos criados por médicos e hospitais, deixando a autodeterminação do corpo da mulher apenas para as privilegiadas.
Em Itália, soube-se ontem que os grupos “pró-vida” vão poder entrar nas clínicas de aborto para tentar dissuadir as mulheres a não o fazer - um verdadeiro cenário de tortura psicológica, que parte de um pressuposto de infantilização e menorização da mulher, que “ainda não terá pensado bem” sobre a sua decisão - como se fosse um ato feito de ânimo leve ou um “capricho”, como foi sugerido recentemente por um conceituado professor de Direito em praça pública.
Num país em que os problemas entre Governo e sindicatos impedem que a Justiça se faça, quem é que não tem medo da sua segurança?
Noticiou o Diário de Notícias que a greve dos funcionários judiciais levou à “libertação” de 12 suspeitos de crimes. Entre eles, cinco detidos por suspeitas de violência doméstica que saíram em liberdade por não poderem ser presentes a juiz de instrução para o primeiro interrogatório no prazo de 48 horas, devido à ausência de serviços mínimos. Temos, portanto, suspeitos de crimes públicos, que atentam diretamente contra a integridade física de outros/as cidadãos/ãs, a circular livremente, pela ineficiência do sistema.
A lista de medos engrossa todos os dias. Uns foram-nos passados geracionalmente, pelos avós e bisavós do tempo da ditadura, mas outros são impregnados nas nossas vidas pela falta de respostas do Estado e da sociedade em proteger todas as pessoas e cada uma.
À medida que o medo aumenta, a liberdade fica mais ténue. Falta muito para cantar vitória.
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