Já sabíamos. Há muito que sabemos que a democracia portuguesa é antiparlamentar. O que acaba, aliás, por se reflectir na qualidade e no recrutamento da Assembleia da República. Com excepção de algumas formas jurídicas indispensáveis, a função política do Parlamento, o seu papel nas negociações e nas decisões, o seu valor como instituição de debate e esclarecimento e a sua ligação aos cidadãos são menores, por vezes ridículos e praticamente inúteis. As regras constitucionais e legais são tais que o debate sobre um novo governo e seu programa mais se parece com uma grande operação de fingimento. Já sabíamos isso tudo. Mas é sempre surpreendente.
Um Governo apresenta-se e não é votado. Um Governo apresenta o seu programa e este não é votado. Se o Governo não pede aprovação e confiança, estas não são necessárias. A recusa só pode vir a cavalo de uma moção de rejeição que não é votada, por causa dos seus méritos, mas sim em razão dos cálculos tácticos dos partidos. Um Governo apresenta o seu programa numa quarta-feira, a discussão começa na quinta e acaba na sexta, antes de almoço, que é princípio do fim-de-semana. Será que os deputados têm tempo, sabedoria, capacidade e meios de ler e estudar 184 páginas de medidas? Não! Definitivamente, não.
(...) uma imagem que todos os cidadãos deveriam ver: a de um Parlamento sitiado, medroso e defensivo. Quem passar pelas ruas de São Bento e da Calçada da Estrela, assim como, sobretudo, pelo chamado largo ou praça de São Bento e pela Praça da Constituição, poderá ver um verdadeiro cerco de vedações e obstáculos a interditar, a pessoas e viaturas, o acesso à Assembleia da República. Imagina-se que se trate de medidas de protecção, não contra o terrorismo ou exércitos estrangeiros, mas simplesmente contra as manifestações. Como é evidente, a praça, o edifício e a instituição devem estar a recato, mas há mil maneiras de o fazer sem ser com aquele horror estético e sem sugerir que o Parlamento tenha medo. Há muitos países, através do mundo democrático, onde a segurança está garantida de outros modos, com outras leis e outros regulamentos. Mete dó imaginar que, todos os dias, duas centenas de deputados atravessam grades e vedações sem se sentirem incomodados! Aquela casa deveria ser simbolicamente a Casa do Povo. Está reduzida à função de edifício público, mais ou menos repartição administrativa. Há quem durma diante da grande escadaria. Há quem faça piqueniques de protesto, comícios e manifestações de toda a ordem. Há quem tenha montado tendas e stands de demonstração e protesto. Não é por ter havido, em 1975, um “Cerco à Constituinte” que a democracia não encontra soluções dignas. Esperemos que, um dia, o Parlamento faça as pazes com o seu povo e que este respeite a dignidade dos seus representantes.
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