March 10, 2024

A ideologia enquanto dogma religioso




Graça Castanheira escreve um artigo sobre a realização cinematográfica e os meios ao seu dispor: os meios digitais trouxeram infinitas possibilidades, democráticas e, apesar de não serem perfeitos, a nostalgia que muitos alunos de Realização Cinematográfica têm, em usar meios analógicos, num regresso a um passado mais puro, ninguém quereria voltar atrás e ficar obrigado e limitado a esses meios. Depois transfere o raciocínio para a política e afirma que a nostalgia de voltar atrás é um revivalismo do mesmo género e que ninguém quereria voltar a um passado da extrema-direita. E depois ponto final... Portanto, o extremismo, se for de esquerda, parece-lhe agradável? É que já tivemos tempos de extrema-esquerda: chamamos PREC a essa era - ela surgiu porque a extrema-esquerda não aceitou o resultado das eleições democráticas que não lhe deram a vitória e nem sequer o segundo lugar do pódio e resultou em quase um ano de atrocidades, perseguições, mortes. 

Apetece citar o caso de hemi-inatenção visual contado por Oliver Sacks no seu famoso livro, O Homem Que Confundiu A Mulher Com Um Chapéu
A sra. S., uma sexagenária muito inteligente, sofreu um grave derrame que afetou as porções mais profundas e posteriores de seu hemisfério cerebral direito. Permaneceram perfeitamente preservados, a sua inteligência e o seu senso de humor.
Às vezes reclama que as enfermeiras não puseram a sobremesa ou o café no tabuleiro. Quando elas replicam:
“Mas sra. S., está bem aqui, à esquerda”, ela parece não entender o que estão dizendo e não olha para a esquerda. Se sua cabeça for delicadamente virada de modo que a sobremesa fique à vista, na metade preservada de seu campo visual, ela diz: “Ah, está aqui — não estava antes”. Ela perdeu por completo a ideia de “esquerda”, tanto com relação ao mundo como a seu próprio corpo. Às vezes queixa-se de que as porções que lhe servem são pequenas demais, mas isso acontece porque ela só come o que está na metade direita do prato — não lhe ocorre que existe também a metade esquerda. Há ocasiões em que ela passa batom e faz a maquilhagem no lado direito do rosto, deixando às traças o lado esquerdo.
Estes é um dos problemas da esquerda e da extrema-esquerda portuguesas: perderam a visão do lado esquerdo da realidade política. São cegos a tudo o que se passa no lado esquerdo do prato político. 
Isto acontece porque vêem-se como a verdade pura, a verdade que pode ser extremista porque é santa e benevolente, mesmo se escolhe matar com a mesma arma que a extrema-direita - logo, não precisa de ser examinada e revista. 
Ser de esquerda é um baptismo e ser extremista, sendo-se de esquerda, é uma benção pois é a verdade levada ao paroxismo. Assim que a pessoa se matricula num partido de esquerda transforma-se, reveste-se de luz. 
Ter o cartão do partido da esquerda equivale a um baptismo. Foi tocado pela mão divina da ideologia de esquerda e ficou pura e verdadeira - pode ser uma ditadora ou até uma fascista, com extremismo ideológico e, portanto, anti-democrático, que mesmo assim é desejável, porque é de esquerda e tem a marca da verdade pura. 
A ideologia, para essas pessoas, deixa de ser uma opção política, uma forma de organização da sociedade, baseada em certos princípios filosóficos, para passar a ser um religião. Não por acaso a extrema-esquerda e o Papa partilham da mesma opinião sobre o império russo e Putin. 
É por isso que certos comentadores políticos são insuportáveis e quando os vejo mudo logo de canal: têm um discurso dogmático de padre ou de seminarista como se tivessem sofrido um derrame cerebral e só conseguissem olhar para a direita - ou como se a ideologia fosse uma venda que trazem, voluntariamente, nos olhos. Esta articulista também escreve com uma venda nos olhos e faz lembrar a sra. S. de Oliver Sacks.



Sobre a impossibilidade de regredir

Os revivalismos culturais, sociais, e mesmo os políticos, são hoje uma atividade experimental, sem consistência programática e, dado o seu carácter exploratório, nunca terão o poder que antes tiveram.


Nas aulas de Realização na Escola Superior de Teatro e Cinema (ESTC), há quase sempre alunos que se propõem gravar os seus documentários com câmaras do século passado. Movem-nos razões diversas, como uma rebelião low tech contra o que consideram ser um excesso de nitidez da imagem digital, a nostalgia por um tempo que nunca viveram ou apenas a tentativa de criar um mundo distinto. Noutras disciplinas da escola, estes alunos terão estudado Pudovkin, o realizador e teórico soviético que escreveu: “Entre os eventos projetados num ecrã e a realidade concreta desses eventos quando inscritos no mundo, existe uma clara diferença. É exatamente esta diferença que faz do cinema uma arte.”
(...)
Aqui chegados, muito embora o domínio das ferramentas digitais possa ser um exercício mais desafiante na criação de espaços distintos do que o recurso a um preset de vídeo, é importante que este continue ao dispor de quem o quiser usar para produzir sentido(s). Sendo indiscutível que o digital democratizou o acesso à produção de imagens em movimento, o que é verdadeiramente vital, luxuoso — e democrático — é a possibilidade de optar por um regime analógico. No entanto, se, por hipótese, fosse comunicado a todos os estudantes de Cinema que nos próximos 15 anos tudo o que terão ao dispor para gravar os seus filmes são câmaras de vídeo analógicas, acredito que os veríamos a correr em massa e de braços abertos para as hipóteses infinitas do digital.
(...)
Concluindo: quem sabe como reagiriam os votantes da extrema-direita se lhes fosse comunicado que, nos próximos 15 anos, são os valores passadistas do partido em que votaram que vão imperar, única e exclusivamente. Talvez aí os víssemos a correr em massa e de braços abertos em direção às hipóteses infinitas da democracia.

Graça Castanheira in publico.pt

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