January 15, 2024

Acho extraordinário que pessoas que não são professores nem percebem nada de educação escolar tenham grande espaço nos jornais para vender teorias ignorantes




Compreendo que um pai fale dos assuntos do ponto de vista dos pais e encarregados de educação e parece-me muito positivo. Mas não, fala mesmo do ponto de vista do professor, como se suas opiniões de dramaturgo tivessem valor de pedagogia escolar.

Primeiro fala num documentário iraniano sobre a escola, pois apercebe-se que se calhar essa educação não é comparável à nossa mas isso não o atrapalha e adianta que há questões transversais como as diferenças sociais, que criam clivagens acentuadas (mas que parecem ser ignoradas por quase toda a gente). A ideia que as pessoas em geral ignoram as consequências das diferenças sociais é logo uma grande prova da ignorância do indivíduo, acerca de tudo o que se diz e escreve em educação. Mas ele deve pensar que é grande especialista de travesseiro.

Depois atira, en passant, que podia falar na encíclica relação entre notas de testes e exames e desempenho académico), mas que não vai falar... pois claro, eu também podia falar de tudo sobre a maneira errada como os cientistas abordam combustão de foguetes espaciais mas não vou falar... é isso... LOL

Enfim, isto para chegar aos TPCs e poder dizer mal: os trabalhos de casa são uma intromissão da escola no espaço da casa que deixam os filho sem tempo para brincar; são uma agenda de autoridade e que é para atirar as culpas para os pais e humilhá-los. Os TPCs são uma prova, diz, de um sistema classista que humilha os pais já mal pagos e que não têm tempo para os filhos. (como se os professores não fossem também pais e também mal pagos...)

Esta ideia dele de que a escola é apenas um espaço para os alunos passarem facilmente e socializarem sem dar trabalho aos pais, é muito querida a este ministro da educação e, por isso, está tristemente na moda.

Este indivíduo, em vez de vir defender as virtudes do laxismo dos professores e das famílias, devia reivindicar uma escola com condições de qualidade pois é assim que defende os seus filhos. Se os pais trabalham horas demais, o que deve mudar é a organização do trabalho em vez de sacrificar as possibilidades dos filhos. 

Na prática, o que ele está a dizer é: não puxem pelo meu filho que eu também não me interesso muito por isso e quero é que ele brinque e não me chateie que estou cansado. É claro, um dia quando o filho ficar de fora de todas as oportunidades por não ter feito nenhum esforço e acabar a arrumar prateleiras do supermercado, vai queixar-se da vida e da escola que não puxou por ele, mas quando o filho teve as oportunidades e era demasiado novo para perceber o que seria o resto da sua vida, o pai, em vez de incentivá-lo a melhorar, queixou-se dos professores esperarem dele mais do que ele próprio.

Quer as pessoas queiram quer não, há disciplinas que precisam da experiência que só se consegue com a prática, tal como os jogos de telemóvel que o indivíduo cita. Aí já não lhe faz confusão que os filhos passem horas a praticar para ganhar perícia, mas quando se refere à escola, de repente a prática que leva à perícia é má? Compreendo: é má porque lhe dá trabalho.

E querer dar aos alunos instrumentos que lhes permitam ter mais escolhas na vida é humilhar os pais? Que grande narcisismo...

Este ano tenho uma turma com um grande grupo de alunos interessados e focados, alguns deles muito bons, e um maior número ainda de bons. Isto é o suficiente para que os menos bons subam de nível. Têm pais interessados e colaborativos. Aparecem todos na reunião e são interventivos. Na primeira reunião disse-lhes que os professores têm boa impressão da turma mas que os miúdos precisam de melhorar o domínio da língua portuguesa. Se eles querem apenas passar de ano, como estão chega perfeitamente, mas se têm expectativas mais elevadas (e eu sei que têm) têm que melhorar bastante nesse domínio porque eles pensam todas as disciplinas, da matemática à filosofia, usando o português e se o português deles é rudimentar, isso significa que as suas ideias lhes correspondem... é uma limitação à possibilidade de trabalhar conceitos e ideias complexas, ferramenta sem a qual, não podem ter grandes expectativas. O que é uma pena dado o empenho e as capacidades dos miúdos. Disse-lhes o que podem fazer para ajudar os filhos nisso porque não é algo que se possa fazer exclusivamente nas duas aulas que têm por semana. 

Agora se fazem é com eles, mas a mim cabe-me puxar os alunos para cima e não empurrá-los para baixo -  como este pai defende.

Portanto, se os pais, não podem, porque não sabem ou não têm tempo para ajudar os filhos nos TPCs, devem reivindicar que eles sejam feitos na escola em vez de reivindicar que se deixe os filhos sem instrumentos para competir com os tais que têm outros recursos - claro que com a falta de professores e o estou-me-nas-tintas dos governantes para a educação isso não vai acontecer. Era preciso os pais serem muito exigentes com o ME em vez de se ocuparem a dizer mal dos professores.

Só que não. Repetem como rebanhos esta ladainha dos TPCs serem maus para o fígado. Mas depois, se vão ao médico, querem que seja um tipo que os atenda focado, com competência e sem negligência ao fim de um dia de trabalho e querem que o engenheiro tenha perícia a fazer os cálculos da ponte, como também querem que os farmacêuticos tenham muita prática e não se enganem nas fórmulas e querem que os professores saibam tirar dos alunos o que eles nem sabem que têm lá dentro. Mas naturalmente que pensam que essas pessoas tornaram-se peritas no seu trabalho, não fazendo os trabalhos de casa quando andavam na escola... porque os pais não estavam para colaborar.

Felizmente nem todos os pais são como este - para bem dos filhos. Gente que atira os filhos para a escola e depois querem que eles saiam de lá educados e cozinhados no ponto, sem que tenham que colaborar um átomo na tarefa de educar os filhos. 

Se os filhos lhe dão trabalho para que os teve? Pensava que era só brincadeira e que a parte do trabalho era só para os outros? Hoje em dia há muito isto de os professores querem apostar nos alunos e puxar por eles e os pais dizerem que não. Uma lástima.


Trabalhos para casa: claro que não

Os encarregados de educação e pais, já sobrecarregados por empregos mal pagos, precários e que exigem energia mental e física, ainda são forçados a abdicar do tempo de família.

Paulo César Gonçalves
Autor, dramaturgo. Nasceu em Guimarães, voltado para o Castelo da Fundação e, até ver, está vivo.

15 de Janeiro de 2024


O documentário Homework, de 1989, do realizador iraniano Abbas Kiarostami, mostra uma realidade perturbadora: entrevistas com vários alunos e dois pais de alunos da escola Shahid Masumi, a propósito dessa prática tão tradicional de enviar trabalhos para casa.

Claro que o bias da sociedade iraniana e do próprio tempo em si se colocam. Não há grande comparação possível com as sociedades ocidentais. E se a relação essencial se mantiver, mude o país, mude a cultura, mude a percepção? Há situações transversais, como a incapacidade de alguns pais em ajudar os filhos, pelas mais variadas razões. As crianças não conseguem esconder os aspectos mais embaraçosos da sua vida, sejam os castigos físicos, a privação ou a comparação com quem tem mais: o que fica é o retrato devastador da diferença entre ricos e pobres. Entre quem pode e quem não pode.

Viajando mais de 30 anos, mais para o ocidente, vemos e escutamos uma prosa continuada de culpabilização e responsabilização dos pais, a propósito da educação, do desempenho escolar e de outros aspectos relacionados com a vida dos mais novos. Vamos deixar de lado o aspecto já batido das óbvias diferenças sociais, que criam clivagens acentuadas (mas que parecem ser ignoradas por quase toda a gente). Vamos focar-nos no prático dos trabalhos para casa (e até poderíamos ir mais longe, focando esforços na encíclica relação entre notas de testes e exames e desempenho académico).

Os "tpc" só servem para o seguinte, mesmo que os tiros nos pés não sejam logo óbvios: entrada desenfreada do espaço escola no espaço família (curiosamente, o fenómeno em sentido contrário é quase sempre diabolizado); captura do tempo de lazer e de ócio familiar (depois de quase meio dia a fio na escola); desequilíbrio na relação escola/família; inexistência do tempo de brincadeira (e assumir que o tempo de escola é mais importante do que o tempo brincadeira, o que é uma grosseira mentira); agenda de acatamento, disciplina autoritária e preparação tida como certa para uma vida incerta; convite à "normose"; responsabilização dos pais e encarregados de educação por temas que podem não dominar; tomada de pressuposto e colagem de rótulos.

A pretexto de uma suposta preparação e consolidação, os trabalhos para casa reinam incontestados, arautos do esforço e do "mérito", ao serviço de programas e de um sistema tão ultrapassado quanto classista.

Fruto da falta de tempo, os encarregados de educação e pais, já sobrecarregados na sua grande maioria por empregos mal pagos, precários e que exigem energia mental e física, ainda são forçados a abdicar do tempo de família para cumprirem com funções suplentes que lhes roubam o necessário tempo para consolidarem laços familiares.

Não se admirem dos telemóveis, dos tablets e dos ecrãs: não nasceram de geração espontânea. São a fácil solução para uma vida mais sobrevivida do que vivida: foi a escola pouco exigente (mas que crê ser o oposto), em termos humanos, dos testes e dos "tpc", que inventou estes refúgios.

 

3 comments:

  1. Os pais não têm que fazer os TPCs. Mas podem ajudar quando há dificuldade. O que acontece quando são muito miúdos. Enquanto são miúdos, controlar se os fazem. Acima de tudo incentivar. Por vezes basta estar por perto a fazer companhia.
    Para os miúdos é importante verem os pais colaborarem com a escola e sentirem que têm o apoio dos pais e se os pais não querem saber eles próprios desvalorizam a educação escolar.
    Eu sempre fui às escolas do meu filho saber como é que ele se comportava e durante os anos do 7º até ao 9º, pedia para me avisarem se ele aparecesse sem o trabalho feito porque estava numa fase... de resto, a partir do secundário tinha um acordo com ele. Durante o tempo de aulas ele trabalhava e tirava boas notas e se cumprisse com a parte dele, nas férias podia fazer o que quisesse.

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  2. Bom...os meus filhos nas férias nunca puderam fazer o que queriam. Faziam por vezes muito do que queriam. Tal como não foram alunos extraordinários, também não desejavam fora da medida; ainda assim, havia discussão de critérios. Antes do secundário a regra era eu não ser chamada à escola por mau comportamento e, havendo negativas ou baixa súbita nas notas, metia o bedelho. Como tal não sucedeu, deixei-os em paz. Penso que tive sorte com eles e eles comigo. E também julgo que podia ter sido uma mãe melhor e mais exigente. Mas não uma mãe mais interessada.

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    1. Em minha casa os meus pais sempre nos deram muita liberdade acompanhada de responsabilidade, desde muito cedo e eu valorizei isso e fiz o mesmo ao meu filho e ele deu-se bem com isso também. Acredito muito em educar para a autonomia.

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