July 10, 2023

José Mattoso (1933-2023)

 


A História só pode ser «luz» para a humanidade se for contada sem «apologética» 

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Na introdução do volume a respeito da Idade Média, o senhor e o doutor Bernardo Vasconcelos e Sousa comentam o papel da Igreja no controle da consciência individual por meio do sacramento da penitência. Por quais técnicas ou, se preferir dizer, modos de abordagens, era possível então haver essa forma de controle social?

A disciplina da penitência, predominante até a instituição da confissão auricular, pelo menos uma vez por ano, imposta pelo Concílio de Latrão de 1215, tinha repercussões muito diferentes da que então se estabeleceu. A disciplina anterior baseava-se fundamentalmente na pressão social da comunidade sobre os indivíduos; o importante era a coesão social. A disciplina penitencial que a partir daí se vai generalizando baseia-se no controle da consciência individual do penitente por outro indivíduo (o confessor), que age por delegação de um poder quase estatal, como era o da Igreja hierarquicamente organizada e com instâncias de controle estritamente codificadas. Ao confiar ao confessor a faculdade de absolver o penitente, de lhe impor uma penitência reparadora da falta cometida, ou de lhe negar a absolvição, a Igreja adquire um instrumento de orientação em todos os domínios da ação humana, inclusive de orientação política, se o penitente é detentor de autoridade civil. Por isso os soberanos têm todos os seus confessores. Por isso aparecem os "espelhos dos príncipes" e os "manuais dos confessores". A esses instrumentos, a Igreja hierárquica acrescenta outros, como são a excomunhão (que adquire novos contornos no século XIII), o interdito, o foro eclesiástico, os impedimentos canônicos (do matrimônio e da ordenação sacerdotal) e as dispensas. A "domesticação" do clero executante das orientações hierárquicas, e, por seu intermédio, a "domesticação" da sociedade e dos seus chefes, é garantida pela pena de "suspensão" em que incorrem os clérigos recalcitrantes. A tudo isso junta-se, ainda no mesmo século, a instituição da Inquisição que controla a expressão doutrinal da crença, em conformidade com a formulação que a hierarquia considera legítima.

(...)

O senhor poderia comentar um pouco o seguinte trecho da apresentação geral: "Como é óbvio, o que os autores e editores procuram não é só o progresso científico, nem apenas a frieza analítica dos comportamentos de outrora, mas também o êxito editorial." Poderia comentar do que se trata esse "progresso científico" pretendido juntamente com os outros objetivos em questão?

Parto do princípio de que a história, tal como é produzida nas universidades, é uma disciplina científica, isto, é com regras de estabelecimento das fontes, da sua crítica e da sua interpetação, e com a necessidade do recurso a métodos quantitativos para definição e análise dos fenômenos históricos observados. Todavia, como Michel Foucault mostrou, a cientificidade da história, como das outras disciplinas das ciências sociais, não tem o mesmo sentido do que nas ciências exatas. Todavia, não é pelo fato de as "leis históricas" não serem absolutas que o discurso histórico pode ser arbitrário. Há, portanto, um progresso científico à medida que a interpretação, a compreensão e a explicação dos fenômenos históricos sejam ou não justificadas com maior ou menor êxito. As explicações nacionalistas acerca da origem da nacionalidade, por exemplo, baseiam-se em pressupostos inadmissíveis. A demonstração desse fato é, na minha opinião, um progressso científico.

Ao referir o "êxito editorial", parto do princípio de que a história, como disciplina das humanidades, não existe em função apenas dos profissionais, mas se destina à sociedade no seu conjunto. Responde à necessidade espontânea que a sociedade tem de compreender a si própria, o que realiza em grande parte por meio da narrativa do seu próprio passado. Essa narrativa não pode ser arbitrária. Tem de ser credível. Exige regras que garantam a sua veracidade.

Dois excertos da Entrevista concedida a Leandro Alves Teodoro por José Mattoso, professor catedrático da Universidade Nova de Lisboa, renomado medievalista autor de várias obras importantes na historiografia portuguesa. 


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