Uma série (por coincidência, muito a propósito do artigo de jornal do post anterior) que tenho estado a ver e acabei hoje. É uma série em oito episódios, que no início pensamos ser apenas uma série policial -logo no primeiro episódio, nas primeiras cenas percebemos que estamos em presença de um criminoso em série- mas que aos poucos se vai tornando outras coisas, nomeadamente uma grande metáfora com um pé na ficção científica. É uma série sobre a violência dos homens sobre as mulheres e sobre a maneira como todos lidamos com o trauma. As vítimas e os criminosos.
Chama-se shining girls, porque o assassino escolhe mulheres que ele vê como ameaçadoras ao seu poder e controlo masculino: mulheres interessantes, inteligentes, fortes e com potencial e, na véspera mesmo de realizarem o seu potencial, de terem a sua grande oportunidade na vida, é quando as ataca. O assassino gosta de arrancar as asas a abelhas e deixá-las junto das mulheres que vai atacar.
A série é à volta de uma mulher, arquivista num jornal de Chicago (ex-jornalista com muito potencial) que foi vítima de um ataque brutal -seis anos antes- e cuja vida se desmorona. Sendo agora arquivista no jornal, vai desenterrar casos de ataques com as mesmas características do seu (embora todas as outras mulheres tenham morrido) e começa a ligá-los no momento em que acontece outra morte semelhante. Junta-se a um repórter do jornal e começam a caçar o predador.
Porém, no fim do primeiro episódio, vemos as coisas ficarem estranhas. A mulher, que mudou o nome de Sharon para Kirby depois do ataque, parece ter episódios de alucinação e episódios de amnésia. Assenta num diário coisas comuns como o nome do gato, onde mora, o nome do marido, a colega de trabalho, etc. Isto porque começou a acontecer-lhe, depois do ataque, entrar num sítio e não reconhecer, nem as pessoas nem a situação - há um mundo antes do trauma e um mundo depois do trauma e o trauma é como que uma cisão da realidade que de repente se torna desnivelada, estranha e sem sentido. A própria pessoa deixa de se reconhecer e ter continuidade de realidade.
Um indivíduo que a certa altura da série aparece como marido de Kirby diz, 'quando soube do que lhe aconteceu, eu que sou uma pessoa alegre e pacífica, tive vontade de matar esse monstro e depois assustei-me por não me reconhecer com esses sentimentos de violência. Portanto, é normal que Kirby que passou por essa extrema violência tenha perdido a identidade e não encaixe na realidade, não se reconheça nem se consiga ligar à pessoa que era antes'.
Num certo sentido, para todas pessoas a realidade tem esses desníveis -num dia parece ter-se o controlo das situações e no dia a seguir dá tudo errado- mas para as vítimas de traumas a realidade é completamente estilhaçada, não apenas por fora, mas por dentro e depois é difícil ter uma imagem una, interna e externa, desses prismas todos.
Quem representa o papel de Kirby é Elizabeth Moss e fá-lo muitíssimo bem. Constrói uma personagem completamente desorientada (tem uns olhos e um olhar de constante dúvida e ansiedade) mas resistente e tenaz quando resolve encontrar o seu atacante.
Quem representa o papel de atacante (Harper) é o actor Jamie Bell que constrói a personagem de maneira perfeita: ele é o típico nobody, rejeitado pela mulher que queria, cheio de raiva por todos, que começa a vida como ladrãozeco de mulheres de meia-idade que vivem sozinhas e que julga que por ter tido uma má infância (a mãe abandonou-o) merece ter tudo o que deseja. Ele é um coitado, logo ele merece compensação e a sua maneira de lidar com o trauma do abandono é o narcisimo e a violência.
Harper é um homem da Primeira Grande Guerra que mata um soldado camarada para lhe roubar a máscara anti-gás e no pós-guerra anda obsessivamente atrás de uma rapariga que não o quer. Sempre que ela o rejeita o olhar e a expressão dele, uma mistura de ciúme e raiva já mostram o seu impulso para a violência.
Também se dedica a esquemas de pequeno roubo e um dia, por acaso, entra numa casa para roubar e dá com um portal do tempo. Toma posse da casa e usa-a, primeiro para espiar e controlar a rapariga que quer e depois, quando ela o rejeita, para ir ao futuro matar mulheres que persegue durante anos com jogos psicológicos de assédio, invasão de privacidade e tudo o mais que invente para destruir e silenciar essas mulheres que ele vê ameaçadoras do seu poder e virilidade masculinos.
Ele representa o homem misógino de todos os tempos e daí a parte de ficção científica da história que o põe a viajar pelo tempo. Ele encaixa em todos os tempos e em nenhum sobressai porque a misoginia e a violência contra as mulheres são comuns em todos os tempos e mais ou menos aceites: o modo como ele se convence que merece um certo tipo de vida, de amor, de poder, etc., o modo como percebe que o contexto social lhe possibilita uma superioridade aceite como natural por todos (a casa enquanto portal do tempo representa esse contexto social favorável sem o qual ele não passaria de um nobody) e o modo como usa o seu poder para a violência gratuita e para a crueldade psicológica.
Não vou contar como se desenrola a caça ao homem, o que acontece às outras personagens e como tudo acaba porque pode ser que alguém queira ver a série que vale muito a pena ver. Ficamos presos aos acontecimentos porque o suspense está muito bem construído e a sensação de perigo, acompanhada de curiosidade é constante. E tem muitos outros pormenores simbólicos que não contei. São oito episódios.
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