Prigozhin chegou com os seus homens, avançou sem resistência e ao som de palmas até 200 km de Moscovo, abateu 17 ou 18 helicópteros russos, matou oficiais russos, pôs Putin, Medevedev, o primeiro-ministro, montes de oligarcas (e certamente outros de quem nem ouvimos falar) e os dois homens com a cabeça a prémio a fugir à pressa, enquanto tropas já cavavam trincheiras à volta de Moscovo e, de repente, Putin faz-lhe uma oferta qualquer por intermédio de Lukashenko e ele vai-se embora com os seus tanques, armas e homens, ao som de fanfarra, selfies e gritos de 'herói', para um exílio qualquer... hã...?
Será isto uma espécie de revolta de mercenários abortada como aquela de 1967 contra Mobutu Sese Seko? Não parece. Não são o mesmo tipo de mercenários. Jean Lartéguy, que muito escreveu sobre os mercenários que encheram os países africanos no cenário pós-colonial dizia que os mercenários não são homens desenraizados que trabalham a troco de dinheiro e que só são leais ao dinheiro. É verdade que ele tinha uma visão idealizada, mitologizada desses 'homens da guerra':
Les hommes de guerre sont de l’espèce qui se rase pour mourir. Ils croient à la rédemption de l’homme par la vertu de l’exercice et du pas cadencé. Ils cultivent la force physique et la belle gueule, s’offrant le luxe des réveils précoces dans les matins glacés et des marches harassantes pour la joie de s’éprouver. Ce sont les derniers poètes de la gratuité absolue.(Jean Lartéguy)
No entanto, uma parte do que ele diz é verdade. Os mercenários não trabalham para ficar ricos ou para a glória (não ganham, nem uma coisa nem outra), mas sobretudo para uma ideia de si mesmos como eternos guerreiros ou algo do género.
Ao contrário dos mercenários do Zaire (ex-Congo belga) e de outros países africanos que eram na sua maioria europeus, os mercenários Wagner são russos a trabalhar para a Rússia, o que é muito diferente.
Não sei que acordo Putin fez com Prigozhin, mas é evidente que a história do exílio com reforma incluída não cola. Desde quando um mercenário se reforma? Morre em combate ou assassinado ou de cirrose. O que vai ele fazer na Bielorrússia não sabemos. O que sabemos é que ele é um perigo para Putin e para Lukashenko também. Mesmo que parte dos seus homens façam contrato com o exército russo, ficarão para sempre ligados e ele, que é o seu chefe.
Putin vai fazer uma forte campanha de descrédito dele -penso- e tentar que ele caia de uma janela. Não vai atacá-lo directamente depois do sucesso que ele teve e do apoio da população, mas vai espalhar que ele é nazi e come crianças ao pequeno almoço. Mas ele sabe disso tudo, claro.
Putin está sem saber o que fazer acerca da guerra porque nada na guerra corre conforme as expectativas. Nada. Nem o comportamento dos ucranianos, nem o comportamento dos russos, nem o comportamento dos europeus. Nem o comportamento dos ex-aliados. Nada. E como corre tudo mal, a corrupção e inépcia dele e dos seus bandits e o prejuízo da Rússia (presente e futuro) ficam cada vez mais à vista. Ainda bem.
A implosão não chegou a acontecer desta vez, mas tivemos um trailer e ficámos a saber que fogem todos a correr e deixam a Rússia ao deus dará.
Prigozhin faz-me lembrar aqueles figuras russas nos primeiros tempos dos soviéticos que era sujeitas a julgamentos populares às ordens de Estaline nos anos da Grande Purga. Eram russos patriotas e leais à revolução, mas estavam no caminho do psicopata paranóico, sedento de poder absoluto.
Eram presos e torturados pelo NKVD sob acusações de revisionismo e traição à causa, o que negavam. A questão é que eram convencidos a declararem-se culpados nos julgamentos populares, a troco de promessas de lhes pouparem a vida (o que sabiam que não ia acontecer porque eles mesmos já tinha estado do outro lado) e não matarem as suas famílias e com o pretexto de servirem uma causa maior que as suas vidas individuais: a pureza da revolução. E faziam-no!
Lembro de ler isso no 'Arquipélago Gulag' de Soljenítsin e não perceber porque é que faziam isso. Eram presas injustamente, torturadas, acusadas gratuitamente e depois sujeitavam-se, sabendo que iam morrer, a ficar com o seu nome enlameado para sempre. E para quê? Por uma ideia da Rússia comunista de futuro radioso...
Prigozhin foi publicamente acusado por Putin de ser um traidor e querer a queda da Pátria e respondeu que não é traidor e não quer o poder e não quer ficar para a História como o homem que pôs a Rússia numa guerra fratricida, só quer limpar o poder dos corruptos e dos sanguessugas.
Faz lembrar aqueles Zinovievs e Kamanevs, com a diferença que não é um político mas um mercenário, que em vez da prisão negociou o exílio e em vez da confissão escolheu o silêncio. Por agora... porque esta história não está acabada e só acaba quando Prigozhin cair da janela ou Putin cair do poder ou as duas coisas. Entretanto vamos ver o que acontece a Shoigu e Gerasimov.
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