A proposta de Estatutos da Ordem dos Advogados é indigna e desrespeitosa, é certo, mas é sobretudo uma ofensa sem memória a todos os advogados que lutaram para impô-la como “profissão para todos”.
José Pereira da Costa
Analisando a proposta do Ministério da Justiça de alteração ao Estatuto da Ordem dos Advogados (EOA) em conjunto com a Lei das Associações Profissionais (LAP), cabe referir as alterações que mais celeuma têm gerado:
1.
Extinção do principal órgão disciplinar (o conselho superior), que julga em primeira (em determinados casos) e segunda instâncias, com reformulação dos conselhos regionais de disciplina (conselhos de deontologia), que julgam sempre em primeira instância, passando a ser compostos, também, por não advogados;
2.
Criação de um órgão de supervisão composto maioritariamente por não advogados, com poderes em matéria disciplinar e em matéria de regulação da advocacia, que substituirá o conselho superior e que terá, ainda, competências nas regras do estágio e sua avaliação final e que se pronunciará sobre as propostas legislativas da Assembleia da República e do Governo com interesse para a profissão;
3.
Permissão das sociedades multidisciplinares, ou escritórios com multidisciplinaridade, em que a advocacia seja, ou possa ser, exercida em conjunto com outras profissões;
4.
Redução dos actos próprios dos advogados, permitindo que a consulta jurídica seja prestada por não advogados:
5.
Redução dos estágios de 18 meses para 12 meses, devendo ser obrigatoriamente remunerados.
Esta proposta de alteração, caso não sofra consideráveis alterações, atinge com forte impacto o coração da advocacia tal como a conhecemos, quer no seu modelo clássico, através do exercício estritamente liberal da profissão, quer no seu modelo moderno, que, aliás, tem sido pouco ou nada discutido, que assenta na contratação, a maior parte das vezes por autênticos contratos de trabalho, de advogados por sociedades, para depois os colocarem ao serviço dos clientes – que são, no fundo, da sociedade e não do advogado.
I - A auto-regulação da profissão, através de um modelo próprio disciplinar, obedece, sobretudo, a uma tutela do e sobre o comportamento do advogado, que leva à não tipificação das condutas puníveis e sim a um elenco de deveres cuja violação levará à sanção.
É sobretudo graças a este modelo que não se compreende a implementação da regra, quiçá importada da disciplina própria da magistratura, de impor a regulação externa, colocando nos conselhos disciplinares profissionais que não sejam advogados.
Relembramos, quanto a este ponto, que a conduta inicial punível terá sempre de assentar numa violação de deveres próprios da profissão. É precisamente nesse ponto que não se compreende como pretende o legislador chamar para julgar esses deveres quem não foi formado para com eles se conformar, adequando a sua conduta profissional ao comando que advém de uma obrigação – a natureza do “dever ser”. Ou seja, seremos julgados por quem não compreende a profissão, desconhecendo a sua deontologia própria, em sede de … deontologia profissional! É estranho, é confuso, é errado, é bizarro!
Para pior, o dito novo órgão tem como pretensão ir muito além do “julgamento”, imiscuindo-se nas atribuições da Ordem dos Advogados, nomeadamente nas competências do bastonário e conselho geral, considerando os amplos poderes que lhe são conferidos.
Sejamos claros e objectivos: a advocacia tem dignidade constitucional e é exactamente por isso que foi onerada com um ónus na primeira das suas atribuições, referindo o artigo 3.º do Estatuto da Ordem dos Advogados a seguinte obrigação: “defender o Estado de Direito e os direitos, liberdades e garantias dos cidadãos e colaborar na administração da justiça e assegurar o acesso ao direito, nos termos da Constituição”
Sem mais, este reconhecimento não pode deixar de ser visto como um ónus – e que ónus: ao advogado incumbe, em primeiras núpcias, a responsabilidade de defender o Estado de Direito, no âmbito das atribuições que foram conferidas à sua profissão. E defender de acordo com a disciplina da auto-regulação!
Nesses precisos termos, toda e qualquer actividade disciplinadora da profissão ou que esteja relacionada com o seu exercício deve ser exercida pelos órgãos próprios da Ordem, eleitos de acordo com os princípios democráticos por que nos regemos.
II - A proposta de EOA foi ainda mais longe: imiscui-se nos estágios, considerando-os todos por igual. Tal significa que quem elaborou a lei, ou quem a pensou, desconhece a realidade da nossa profissão.
O resultado da remuneração dos estágios terá, inevitavelmente, a seguinte consequência: o modelo clássico de estágio, hoje muito assente em patronos que praticam “Advocacia de sobrevivência”, acabará, acabando, à distância, esse modelo de advogar, o que terá um custo que nenhum dinheiro do mundo pagará: a funcionalização da profissão, com a sua regulação a ser feita por corporações comerciais, em claro prejuízo dos particulares.
Este último aspecto é, se visto isoladamente, gravíssimo. Mas é muito mais grave, mas muitíssimo mais grave, se o virmos em conjunto: surge incorporado na permissão de sociedades multidisciplinares.
O que tem um resultado que terá um efeito de erupção vulcânica: a advocacia de futuro será exercida por trabalhadores por conta de outrem, provavelmente sociedades comerciais, sem capacidade de discutirem o efectivo patrocínio do particular, de o assegurar como actividade voluntária, determinada por si, princípio basilar do mandato forense.
Bem sei que o sigilo profissional tem sido o que mais polémica tem causado, considerando que o exercício da advocacia em conjunto com outras profissões, no mesmo espaço físico, seja em modelo societário ou não, pode colocar em causa o princípio sacrossanto da obrigação de sigilo profissional (“advogado que não saiba o que é o segredo, não é advogado…”, são palavras eternas do meu mestre nos primeiros dias de estágio).
Concordo que as sociedades multidisciplinares poderão colocar em causa esse princípio, mas admito que se possa discutir se em concreto é mesmo assim, ou se há formas de condicionar o exercício dessas sociedades.
Já não vejo como ultrapassar a resposta a estas questões: a profissão de advogado ser a de trabalhador por conta de sociedades que não se dediquem em exclusivo à advocacia, coarctando a liberdade de patrocínio, coloca em causa o Estado de Direito? Podem não advogados praticar actos típicos de advocacia?
Por outro lado, não podemos esquecer que a proposta de EOA reduz significativamente o leque de actos próprios dos advogados, substituindo-os, em matérias essenciais como a consulta jurídica ou a elaboração de contratos, por outros profissionais. Esta proposta é indigna e desrespeitosa para a advocacia, é certo, mas é, sobretudo, uma ofensa sem memória a todos os advogados que lutaram para impô-la como “profissão para todos”: somos nós que asseguramos que todos os cidadãos tenham assegurada a sua defesa, independentemente da sua capacidade financeira, seja na consulta jurídica, seja na barra dos tribunais, através dos actos próprios, porque essa é a alma do Estado de Direito, no respeito pela direito inalienável à representação jurídica.
III – No próximo mês de Julho discute-se o “estado da advocacia portuguesa” no Congresso dos Advogados, que se realizará em Fátima nos dias 15, 16 e 17. Será uma óptima oportunidade de mostrarmos o que queremos. Mas, sobretudo, será uma ocasião especial se os advogados se unirem em torno de um objectivo comum e que é absolutamente essencial para a vida em democracia: a advocacia é a profissão da liberdade!
Mais do que não nos esquecermos, é hora de o relembrarmos. Amanhã, garantidamente, será tarde.
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