Nem Marcelo dissolve, nem a gente almoça
Ana Sá Lopes
Há muito boas razões para interromper a legislatura (“episódios”, diria o Presidente Sampaio), mas nenhuma para continuar a falar dela todos os dias sem que haja uma consequência clara.
Esta sexta-feira, Marcelo voltou a interromper o tal silêncio a que se tinha votado (mas que só deve ter durado uma semana) para dizer numa conferência uma frase batida e não, não foi a de que hoje era o primeiro dia do resto da nossa vida.
No momento em que vivemos, quando o Presidente da República diz “quando o poder entra em descolagem em relação ao povo, não é o povo que muda, é o poder que muda”, só há uma unívoca leitura. Marcelo vai mostrar que, quando falou tantas vezes em dissolução do Parlamento, não estava a brincar com as palavras, nem com o Governo, nem com o país.
A decisão de António Costa de manter João Galamba no Governo – contra aquela que seria a vontade do Presidente da República e até do PS ou pelo menos do seu eleitorado depois da trapalhada do computador do adjunto – foi um desafio ao Presidente da República, que o amparou em quase todos os momentos e que é profundamente insuportável.
O regime semipresidencialista é complexo, mas tem funcionado em Portugal: o que diz a Constituição é que o primeiro-ministro propõe ao Presidente da República os ministros e o chefe de Estado nomeia os ditos (há precedentes de recusas presidenciais) e dá posse. À cabeça, a Constituição quis aqui salvaguardar uma necessidade de consenso que foi absurdamente quebrado.
Esta terá sido a mais acabada expressão de maioria absoluta equivalente a poder absoluto em que na campanha António Costa jurou jamais cair, apresentando curiosamente Marcelo como a melhor garantia para tomar conta dele.
Vamos lá recordar o latim que foi a “basezinha” de Costa para, a 22 de Janeiro de 2022, nos garantir que a sua maioria absoluta seria diferente. “Muitas pessoas têm receio das maiorias. Houve más experiências. Mas o poder desta legislatura vai ser exercido sob o mandato do actual Presidente. Quem acredita que com um Presidente da República como Marcelo Rebelo de Sousa uma maioria do PS poderia passar da linha?”, disse, acrescentado ser Marcelo “um constitucionalista”.
Lida à luz dos acontecimentos recentes, em que António Costa mandou à fava o conselho do Presidente para aceitar a demissão de Galamba e decidiu colar-se à versão do ministro das Infra-Estruturas, jurando a pés juntos que houve roubo e o SIS agiu dentro da lei (segundo vários especialistas, um contra-senso), a frase é um delírio.
Se ainda juntarmos que, esta semana, Costa se recusou a responder à Assembleia da República sobre se o seu secretário de Estado adjunto o informou de que tinha aconselhado Galamba a reportar ao SIS, a frase de campanha em que Marcelo é alcandorado a vigilante da maioria absoluta é absolutamente cómica.
A reunião recém-marcada do Conselho de Estado e os encontros com os partidos depois de acabar a comissão de inquérito à TAP deram esta semana o sinal de que o Presidente pode mesmo estar a pensar dissolver a Assembleia da República. É perfeitamente compreensível que o faça: cada dia que passa a votação no Chega corre o risco de aumentar perante as cenas a que assistimos. Ao não dissolver, Marcelo acaba por colar o seu legado presidencial ao legado de António Costa.
Agora, se o Presidente está só a brincar com o fogo, mas sem arriscar queimar-se, por favor, pare. A ameaça contínua da dissolução paralisa as instituições e um governo e uma Assembleia da República a funcionarem sem saber como será o dia seguinte comprometem o regular funcionamento das ditas.
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