March 22, 2023

Música para o dia de hoje: J. S. Bach ► Geschwinde, ihr wirbelnden Winde, BWV 201




(“Music is enough for a lifetime but a lifetime is not enough for music” Sergei Rachmaninoff)


Quando Bach chegou a Leipzig em 1723 para servir como Cantor estava, de facto, a aceitar uma despromoção socio-económica em troca da possibilidade de finalmente cumprir a vocação da sua vida: a criação e execução, ao mais alto nível, de um corpo de música ideal para a igreja. 

A posição de Cantor não era glamorosa nem prestigiosa em comparação com a anterior como Kapellmeister da corte, mas Bach acreditava que a verve cosmopolita de Leipzig e a proeminência dos seus instrumentos musicais de igreja permitiriam os seus propósitos e que a sua muito famosa universidade serviria bem os seus filhos em crescimento. 

Contudo, depressa descobriu que tinha sido enganado por Gottfried Lange e pelos outros funcionários da cidade que tinham saudado a sua candidatura ao cargo. 
Os alunos (os rapazes do coro) da Thomaskirche não estavam bem preparados e as condições de vida e de trabalho na igreja e na escola eram péssimas; pior, a administração da escola contrariou repetidamente as tentativas de Bach de auditar os seus coristas, havendo no coro rapazes errantes sem nenhum talento ou interesse especial pela música. 

Bach tinha sido levado a esperar que a câmara municipal respondesse com calor e entusiasmo aos seus esforços para aumentar drasticamente a qualidade da produção musical nas suas igrejas, mas na verdade aconteceu o oposto: foram-lhe continuamente negados os fundos necessários para aumentar os músicos formados e profissionais, de tal modo que teve de confiar em grande parte nos serviços pro bono para cantores a solo. Até os ensaios extra aos sábados para preparar o serviço religioso dos domingos foi combatido. 

Bach persistiu obstinadamente na sua missão, completando o famoso ciclo de dois anos de cantatas dominicais apesar dos seus patrões, que provavelmente imaginavam que ele em breve se desabituaria de uma noção tão fantasiosa. 
O fluxo de trabalho parece ter seguido um plano semanal determinado: de terça a quinta-feira, preparação da cantata seguinte e a cópia das partes, para que todos pudessem estar prontos para os ensaios e treinos por secções que começavam na quinta-feira à noite, antes do ensaio principal de sábado. O processo prosseguiu, inexoravel, quase todas as semanas, durante muitos meses a fio. 

Embora Bach se certificasse de que as suas composições cumpriam os seus ideais, as actuações certamente não o faziam, e havia pouco que ele podia fazer a esse respeito. 
Em primeiro lugar, a acreditar nos relatos das testemunhas oculares, Bach mal conseguia tocar ele mesmo os teclados do seu orgão de igreja porque tinha de se movimentar continuamente entre as várias secções dos coros e orquestras para corrigir erros, sussurrando freneticamente instruções em tempo real; depois, a congregação não prestava muita atenção nem ao serviço religioso, nem à música, uma vez que os paroquianos da alta sociedade permaneciam fora da igreja para cheirar o rapé e admirar as roupas uns dos outros enquanto, mesmo dentro da igreja, a música dificilmente era ouvida por cima de toda a conversa, tosse e arrastar de bancos. Uma vez em que o organista cometeu um erro na sua parte, Bach gritou enfurecido com ele de um modo que a maior parte da igreja pôde ouvi-lo claramente a berrar: "Seu c..., você devia ter sido antes um pedreiro"!

O estado mental do Bach deve ter caído para um verdadeiro nadir quando o conselho municipal decretou que a admissão à Thomasschule deixaria de depender de um mínimo de aptidão musical. Bach deve ter sentido que toda a esperança estava perdida, uma vez que o seu coro em breve deixaria de ser suficientemente competente para aprender as fantasias elaboradas de coral contrapuntal com que a maioria das cantatas sagradas começava. 

Alguns membros da elite da cidade encorajaram Bach a baixar as suas expectativas e suavizar as suas exigências, aceitando o mesmo compromisso que Kuhnau e os outros que o precederam tinham aceitado. E muitos cidadãos de Leipzig já acreditavam que a música da igreja de Bach era demasiado ornamentada e mundana para a glorificação de Deus - é bem provável que a obstinação do conselho municipal tenha reflectido essa opinião generalizada.

Mas surgiu uma réstia de esperança em 1729, quando Bach assumiu o leme do Collegium musicum em Leipzig, a associação de músicos profissionais, semi-profissionais e universitários cujo trabalho era proporcionar entretenimento musical pela cidade. 
Bach liderou até sessenta concertos do Collegium por ano e fez uma grande demonstração na igreja ao convidar uma grande orquestra voluntária de alta qualidade do Collegium para a actuação do BWV 174, Ich liebe den Höchsten von ganzem Gemüte, a 6 de Junho. 
A sinfonia, uma reelaboração da abertura do Concerto nº 3 de Brandenburgo em G, é uma exibição pirotécnica de cor, textura e destreza instrumental; é seguida por árias simples que mostram o estado terrível das forças vocais colocadas à disposição do Cantor. John Eliot Gardiner interpreta isto como um gesto de desafio à igreja e às suas autoridades.

Bach desenvolveu ainda mais o seu tema no Outono, quando estreou com o Collegium a sua cantata secular (ou dramma per musica, como ele lhe chamou) Geschwinde, ihr wirbelnden Winde ("Hurry, ye swirling winds"), BWV 201. Com um libreto fornecido pelo frequente colaborador de Bach, Picander, esta peça de quinze movimentos - praticamente uma ópera em tudo menos no nome - conta a história de Apollo-Phoebus e o seu concurso de canto com Pan.

Phoebus e o seu apoiante Tmolus representam a sublime e disciplinada tradição de excelência na música, enquanto o estilo de Pan é muito mais populista e sensacional e é apoiado por Midas (o do ouro). Não é difícil adivinhar quem é suposto representar Bach e os seus objectivos e trabalhos, e quem é usado para representar a Câmara Municipal. "A sua música pode excitar as pequenas ninfas", adverte Phoebus Pan, "mas o seu esvoaçar é demasiado terrível para agradar aos deuses".

Certamente Bach convidou para a estreia um who's-who das  luminárias da cidade, o que também marcou a sua primeira actuação oficial como director do Collegium. Talvez ele e Picander pretendessem mostrar a sua nova liberdade artística e intensificar o desconforto de certos ouvintes, fazendo Phoebus cantar uma serenata inefavelmente sentida e adorável ao seu amante catamita, o belo jovem Hyacinth.

Apesar de ter sido redigido na erudição da mitologia clássica, este assunto teria sido quase o equivalente à pornografia homoerótica actual, da perspectiva de grande parte da audiência de Bach. Muito para além do escândalo, há um sentimento mais profundo: aqueles que conhecem a história teriam sabido que Jacinto é morto pelo Vento Ocidental ("wirbelnden Winde"?) muito para o horror de Apolo. Através desta alegoria, Bach podia estar a insinuar o seu pessimismo sobre o destino das crianças da Thomasschule.

A ária de Pan (populista), em contraste, é pontualmente ridícula, fervilhante de "tanzen und springen" (danças e saltos) e manifestamente desprovida de qualquer coisa como a subtileza do "Mit Verlangen" de Phoebus (erudita). O deus Mercurius escuta pacientemente, depois repreende Midas (o do dinheiro) por apoiar tal insensatez e atribui a Phoebus os louros com orgulho radiante.  Não é provável que o seu ponto de vista tenha sido perdido na audiência... 

(fonte: the leading tone)

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