Fala De Um Homem Afogado Ao Largo da Senhora da Guia No Dia 31 De Agosto De 1971
Poema de RUY BELO
A mim morto no mar entre algas e corais
que notícias me dais aí da superfície
dessa única terra onde vivi
e foi minha ambição morrer pra nunca mais?
Ainda cheira a esteva por aí?
Que mundo de repente recupera
quem ao abrir um dado dicionário sente o cheiro
do jornal infantil folheado em criança
no pavimento térreo dessa adega
onde o verão intenso nem entrava
mas intensificava mesmo a humidade?
Ainda porventura a alguém
se lhe molham os olhos ao lembrar
quem à vontade meninice fora assim corria
como quem aí tem aquela única casa
afinal sua toda a sua longa vida?
Ao menos uma folha se moveu quando morri
à vista desse cerro aonde o vento dependura cantos
nas mais instáveis copas dos pinheiros
onde a névoa se adensa e cobre aquele castelo
ali erguido para humanizar o mar
e até perpetuar esse quebrar das ondas
contra esses rochedos um recurso secular
que a terra utilizou para se opor à sedução da água
instável envolvente e incapaz de conseguir a paz
como o chão que na pedra tem a máxima fixação?
Alguém notou acaso a minha falta
para além dum visível ponto de referência
um aceno do sono ou som do sino
gesto de mão sorriso silhueta?
Sentiram-se levados a exaltar-me
os que na destruição me vislumbravam
uma certa razão das suas vidas?
Alguém me aquecerá o coração ao fogo
quando o frio do fundo e das correntes
fender as minhas vísceras dispersas
por estes cinco mares onde espalho
a morte merecida pela minha condição de peixe?
Se alguém descer até estas profundidades
porventura será capaz de decifrar
o mistério reflectido nestes olhos
eternamente abertos sobre o meu amado mundo?
Alguém foi como eu profundamente vil
e muito mais o foi por conhecer que o era?
Onde dormem agora os que eu amei?
Como lhes foi possível perecer
se eu por os amar os tinha por eternos?
Seriam só eternos para mim?
Que paz lhes pesa agora sobre o peito?
O sol ainda nasce? Ouve subitamente alguma música
quem tão perdido estava que de súbito começa
e olha para tudo com os olhos limpos
de quem as coisas vê pela primeira vez?
Quem lá na minha aldeia sacrifica hoje
o porco semanal em troca dum grunhido
desfeito contra os montes circundantes?
Morto o miguel ainda fica a faca?
Ainda pelas ruas ao domingo
se tem de procurar não pôr os pés nos bêbados prostrados
convencidos talvez de vir a ter em tão precária posição
mera antecipação da humana condição definitiva
alguma solução para a sua indigna sujeição?
Ainda vem à quarta de almoster o ferrador
ferrar machos cavalos na barraca de madeira
erguida ali à beira do caminho
que me levava a casa e devolvia à vida?
Porventura o barbeiro ainda se chama marcelino?
Compram cada semana os seus trabalhadores
reunidos na praça após matar o bicho
os senhores dos pauis e vinhas e courelas?
Festeja-se na adega o termo da colheita
dessa azeitona vorazmente varejada da oliveira
sobre o espesso pano de serapilheira?
Alguém caiu de cima de uma árvore
por causa da geada de janeiro
e até da aguardente ingerida em jejum
em todos estes anos desde a morte do bizarro?
A cheia traz o sável pela primavera?
Há bailes na ribeira a dois quilómetros
passado o pinheiro manso pelo carnaval?
Como se chama agora a dona da farmácia?
Há fogueiras em junho onde debaixo de aparente devoção
se exalta a vida e normaliza a natureza?
Os noivos vão casar-se de carroça
e abrem de abalada as mãos cheias de confeitos sobre as testas dos miúdos
que se juntam à espera para os ver passar
e não sabem ainda como é triste a alegria?
A quem pertencem hoje as lavegadas
onde as mulheres mondavam as searas
e as folhas arrancavam às videiras
que vedavam às uvas o acesso ao sol?
Nestas núpcias eternas com a água
sobre sinos e ventos sibilantes
não se ouvirá soar a monocórdica
e harmónica música daquelas campainhas
das máquinas registadoras dessa lojas
desse porto e da vila onde dormi
os últimos dez anos de visitas começadas
num verão lembro-me bem num dia três de agosto
dentro da composição número mil e oito da cp
(alguém de letra irregular o deixou escrito num romance
comprado na estação do entrocamento
e por mim esquecido ao chegar a são bento)?
Existirá ainda o escuro casarão até talvez capaz de atenuar
a música do sino que ritmava a vida
nessa vila pequena aonde o homem
mais de frente enfrentava o frio olhar da morte?
Que é feito da pensão perto dos estaleiros
onde eu bebia com os pescadores e carpinteiros
e que deixei de vez para ir ao encontro
da musa mais discreta e silenciosa dos meus versos?
E eu que nos lençóis via a neve polar
que às vezes ao cheirá-los me sentia transportado
subitamente a sítios e a dias do passado
que só os soube na verdade apreciar
levado pela mão de camilo pessanha e dylan thomas
eu que em lençóis de linho ambicionava repousar
são de água os meus lençóis e à volta é o mar
Se me via cingido de cidade
se nem já mesmo o sol deixava entrar em casa
sem antes ele limpar os dois sapatos ao entrar
devo afinal a gestos artificiais
o meu regresso às coisas naturais
Não pense quem vier que estou sozinho
entre inúmeros peixes das profundidades
e os corpos de incontáveis pescadores
como o jovem lourenço são miguel
que aqui se despediu dessa vida de aí
a cinco salvo erro de janeiro de sessenta e cinco
Não reparam que olho com os olhos cheios de água
quem só mais do que eu pertence ao mar
por aqui habitar só aparentemente antes?
Moradores da terra fogo ou ar
sabei que o solo sólido da terra foi apenas para mim
insegurança oscilação vertigem
e que em verdade agora mais do que acabar
o que fiz foi voltar à minha origem.
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