August 02, 2022

Um artigo para o senhor Vítor Bento (presidente da Associação Portuguesa de Bancos) ler




Para perceber porque é que há uma  “hostilidade cultural” à obtenção de lucros. Aqui é o banco do Estado a obter lucros, ou melhor, a roubar descaradamente, viúvas indefesas. 



O estranho caso das dívidas das viúvas


Fernanda Câncio

A Caixa Geral de Aposentações está a fazer depender o pagamento de pensões de viuvez da cobrança de "dívidas" de dezenas de milhares de euros, sem as comprovar nem prestar qualquer esclarecimento sobre a formação. Isto apesar de a justiça já ter exigido explicações.

Imagine que perdeu o seu cônjuge e requer a pensão de sobrevivência a que tem direito. Tratando-se do decesso de um funcionário público, dirige o pedido à Caixa Geral de Aposentações, que passado algum tempo lhe responde, informando que tem direito a uma pensão de valor x. Está tudo bem, pensa, até ler o terceiro parágrafo: para receber a dita pensão tem de pagar uma dívida de mais de 21 mil euros à CGA, que esta simpaticamente se apresta a cobrar em 60 prestações durante cinco anos.

21 mil euros?, pergunta, sem querer acreditar. Mas porquê? A resposta está em duas linhas: trata-se do "montante global de descontos que não se encontram pagos, necessários para que a pensão de sobrevivência seja igual a metade da pensão de aposentação/reforma a que o falecido tinha/teria direito". Não há mais informação, nomeadamente remissão para diploma ou diplomas legais que sustentam tal "cobrança", prova do que é afirmado e de como se chegou a tais valores astronómicos e - fundamental - se existe alguma alternativa à aceitação da cobrança ou prazo para a impugnação/reclamação.

É aquilo ou, pensará o destinatário da carta, não se dando o caso de ser jurista ou especialista em segurança social, nada. Assim será com a maioria dos colocados nesta situação (quantos serão?) que precisem da pensão para sobreviver: temendo que uma reclamação implique o não pagamento, aceitarão sem recalcitrar. Pode até suceder que, dada a forma como o texto está escrito, nem sequer percebam o que lhes está a ser dito.

Foi o que sucedeu a Maria, 78 anos, viúva desde dezembro, que em março recebeu a missiva descrita e da mesma só retirou a informação sobre o montante da pensão que lhe ia ser paga; nem mesmo quando começou a recebê-la se deu conta, por lhe terem transferido várias prestações de uma vez, de a CGA estar a reter cerca de um terço.

Só quando mostrou a carta a outra pessoa, mais conhecedora de linguagens cifradas e entrelinhas, foi desenganada, tendo então percebido que a CGA considera que o marido, militar aposentado com serviço na guerra colonial, não efetuou os tais descontos "necessários" entre outubro de 1958 e julho de 1983.

Porquê? Como? E a ser assim, por que motivo, a existir uma dívida tão antiga, não foi ela apresentada, em tempo, a quem era responsável pelo seu pagamento (o marido)? Pode sequer a CGA cobrar uma dívida com mais de 40 anos?

Como já se percebeu, a carta não dá qualquer explicação sobre essas óbvias questões. Tão capciosa secura informativa seria sempre inaceitável; é-o ainda mais por ter sido já objeto de censura judicial, num processo apreciado pelo Tribunal Central Administrativo Norte em 2020, que teve como resultado a impugnação de uma comunicação idêntica.

Não podia, de resto, ser mais clara no acórdão a irritação dos juízes com "o modo como a CGA lida com os seus beneficiários, através de uma linguagem cifrada e impercetível, refugiando-se em fórmulas não intuitivas nem explícitas, mantendo a mesma postura quando litiga contenciosamente".

O caso em apreço é praticamente decalcado do de Maria, sendo o valor da alegada dívida idêntico (22 mil euros), e idêntico o "plano de pagamento": 60 prestações em cinco anos. A diferença é que esta outra viúva percebeu o que lhe era dito na carta e exigiu explicações à CGA, que ao longo de várias trocas de mails conseguiu não apresentar uma justificação compreensível - nem para a destinatária nem para os juízes e ministério público. O qual se junta à exasperação: "A Administração Pública não pode reagir em sucessivos e ligeiros telegramas, em jeito de "diz tu direi eu", num recorrente tiktok, quando já se percebeu que a beneficiária está perdida no meio das suas respostas. Impõe-se que pare e que alguém, em cumprimento do princípio da colaboração com os particulares (artigo 11 do Código de Processo Administrativo), agarre no assunto e detalhadamente, com todos os dados, justifique a decisão."

Não admira pois a conclusão do acórdão: "Está aqui em causa, na fixação da pensão de sobrevivência, uma suposta dívida do então cônjuge da Autora (...), sem que se percecione a que se reporta essa dívida, quem terá sido o responsável pela mesma, e quais os normativos em que assentam as operações aritméticas com vista à fixação do valor da dívida e do emergente valor da pensão fixada. Os ofícios remetidos (...) pela CGA cingem-se, no essencial, a um conjunto de parcelas, datas, fórmulas e quadros, sem que se percecione o seu fio condutor, quer em termos factuais, quer em termos normativos, assemelhando-se a enigmas insusceptíveis de serem revelados. (...) A fixação do valor de uma pensão, e a enunciação de eventuais dívidas de quotização que se refletirão no valor a atribuir mensalmente ao interessado, é um daqueles tipos de ato que carece de uma circunstanciada e clara fundamentação, (...) importando que se percecionem todas as operações aritméticas relevantes efetuadas, qual a razão dessa dedução, qual o fundamento de facto e de direito subjacente à referida operação, e em que momento ocorreu a dívida em questão e quem foi o seu responsável."

Não se sabendo como terminou este caso e se este acórdão, que examina e rejeita um recurso da CGA, foi o seu fim - a autora da ação exigia a impugnação da dívida em conjunto com a impugnação da comunicação da mesma -, o que se pode concluir é que a Caixa Geral de Aposentações, (desde 2015 tutelada pelo ministério do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social) continua tranquilamente a enviar as mesmíssimas cartas, quais "enigmas insusceptíveis de serem revelados", como se nunca tivesse sido instada pela justiça a falar claramente e a comprovar aquilo que afirma.
É possível - e as respostas dadas pela CGA à autora da ação indiciam-no, pela sua total, até cómica, baralhada - que nem os técnicos que elaboram as cartas e se aprestam a aplicar a lei percebam que raio de dívidas são aquelas.

Porque é realmente difícil perceber. Mesmo admitindo a existência de períodos de carreiras contributivas de funcionários públicos nos quais o cálculo de descontos não incluía (como inclui hoje por imposição legal, através de uma "unificação" da taxa social única), uma parcela para as pensões de sobrevivência, como pode essa eventual falta ser imputada, tantas décadas depois, a quem vai beneficiar das pensões de sobrevivência? E como compreender que o cálculo dessa suposta dívida, relativa a remunerações com mais de 40 anos, seja feito - é o que se está a passar - com base no valor de remunerações atuais, enquanto pelo contrário as prestações entregues há décadas são, a atender ao caso descrito no processo judicial (15 escudos mensais, atualmente equivalente a sete cêntimos, pagos durante 22 anos e meio, correspondem na contabilidade da CGA a um total de 20,20 euros), tomadas pelo seu valor facial?

Era talvez de, como diz o Ministério Público no processo citado, alguém agarrar no assunto "e detalhadamente, com todos os dados", justificar esta trapalhada. Isto se o Estado não quer ser confundido com um qualquer burlão de phishing.

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