August 20, 2022

Pensamentos de dois melréis

 


A nossa relação com o mundo é poética. As crianças começam por ter uma relação poética com o mundo. Se viajam numa noite de luar, olham pela janela e perguntam, 'porque é que a lua corre atrás de mim'? A lógica mundana vem mais tarde com os pais, presos às TVs, ao quotidiano das contas para pagar, à artificialidade das redes sociais.
Aos poucos adormecem para a poesia, deixam de atentar no maravilhoso que espanta e a única relação que têm com o mundo é funcional. Andam adormecidos, mortos em vida. Porém, de vez em quando comovem-se: com um pôr-do-sol, com a expressão de um cachorro, com o amor, com um filho que nasce... por momentos estão despertos e sentem-se vivos e cheios de poesia. Depois voltam a adormecer e a construir uma relação simulada e puramente utilitária com o mundo, intermediada pelas coisas, pela acumulação de riquezas, pelas honras, pela ostentação, pela competição, pelo poder.

O poder rouba a poesia da nossa relação com os outros, com a natureza e com o mundo. Torna tudo bruto e nessa medida mata, obscurece as possibilidades de interagirmos com o mundo e com os outros a um nível profundo e poético.
Não há atenção, nem desvelação, nem descoberta, nem projecção da imaginação, nem caminho e esforço de nós em direcção ao outro e ao mundo para o ouvir e atentar. Retiramos-lhe agência, personalidade, voz e vontade como quem esventra uma montanha para lhe retirar à força as pedras desejadas.

A vida moderna, esmagada pela tecnologia e pelas redes sociais afastou-nos da natureza e, portanto, de nós mesmos, da nossa origem profunda, de tudo o que é maravilhoso no mundo, nos espanta e nos enche mais plenamente e que é apercebido na nossa relação poética com o mundo. Se estamos despertos e atentos, a nossa relação com o mundo nunca perde o contacto com a sua poesia: a vertente comovente, bela, figurativa, metafórica, significante, delicada e profunda do perfume dos outros e do mundo. Se não estamos despertos, não vemos poesia em coisa ou pessoa alguma, mesmo que nos venha bater à porta e esteja cara-a-cara connosco. 


2 comments:

  1. "O poder rouba a poesia da nossa relação com os outros, com a natureza e com o mundo". Destaco. E não são reflexões de dois melréis, não senhor.

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