Elisabeth Leonskaja, há 33 anos, no Japão, com 44 anos a tocar o 1º movimento do Concerto nº 5, mais conhecido pelo nome de Imperador, de Beethoven.
Fui ontem ouvi-la tocar este concerto, na Gulbenkian. A casa cheia, claro, porque este concerto deve ser o mais popular de Beethoven. Aliás o programa era todo com Beethoven, peças populares: primeiro este concerto, depois a Sinfonia nº 5.
Nem sabia que a seguir ao Concerto ainda havia a Sinfonia. Fui lá para o Concerto. Apesar da orquestra ter tocado excelentemente a Sinfonia, confesso que a ouvi meio ao longe como se estivesse atrás de uma parede para onde só espreitava nas partes da peça que mais gosto, porque estava ocupada a repetir na minha mente o «filme» da Leonskaja a tocar o Imperador. A armazenar a imagem, o som do piano e emoção sentida para poder recriá-los mais tarde, sempre que precisar deles.
Elisabeth Leonskaja entra em palco, já sem muita agilidade no corpo e senta-se pesadamente ao piano. Não se está à espera do que vem a seguir. O concerto do Imperador começa com um Allegro grandioso. Assim que a orquestra começa a tocar, o piano irrompe e interrompe-a com impetuosidade. Lança-se num floreado, por vezes lírico, por vezes triunfal. É uma movimento tecnicamente difícil -sozinho tem quase seiscentos compassos- cheio de brilho e grandiosidade.
Elisabeth Leonskaja, com os seus 77 anos, atira-se às teclas do piano a atacar a música com uma paixão, um vigor e uma alegria que por vezes, no auge das investidas nas teclas o corpo até se levanta do banco. Tira uma sonoridade poderosa do piano, numa exuberância alegre que enche todo o espaço da sala de ondas fluídas, ora densas ora suavíssimas de puro lirismo, com crescendos gloriosos. Ficamos pregados à cadeira a deixar a música fluir dentro de nós. Emocionante até às lágrimas.
Ando a fazer uma formação sobre o argumento de Frankfurt no problema do determinismo/libertismo. É difícil, quando nos pomos no ponto de vista da ciência, argumentar contra o determinismo; porém ontem, enquanto a ouvia tocar esta peça pensava que não é possível ouvi-la e reduzi-la a átomos, moléculas, partículas e ondas quânticas. Como negar a presença de um espírito voluntarioso que ultrapassa as leis da física nesta mulher cujo corpo aparente nada tem que ver com aquela força extraordinária que irrompe dela, o turbilhão interior que ela exterioriza em sons quando toca? E que dizer de Beethoven que criou e viveu esta música dentro de si? Será que ele a sentiu e imaginou tocada assim?
O ser é um grande mistério e a arte é, talvez, o maior enigma do ser humano.
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