Há um estigma desta doença e é verdade que uma pessoa se culpa de estar doente porque associa aos hábitos tabágicos. Bem, os médicos, quando me conhecem e eu tenho que informar da doença, a primeira coisa que me perguntam é: fuma ou fumou, quantos cigarros e quantos anos? Preparo-me para a pergunta antes mesmo de lá entrar. Eu percebo que eles precisem de saber mas é uma pergunta que torna difícil desculparmo-nos a nós mesmos porque é um dedo apontado.
Eu sou a única pessoa que conheço com um problema oncológico que não tem nenhum problema nenhum em dizer o que tenho. As pessoas também não estão habituadas a ouvir. Houve duas pessoas na escola que quando regressei, fugiam de mim, porque não sabiam o que me dizer nem como.
Andava a fazer imunoterapia e às vezes aparecia com grandes pensos na mão, dos cateteres, se ia fazer tratamento de manhã e dava aulas à tarde. Depois um dia ganharam coragem e vieram ter comigo pedir desculpa, o que era escusável. Eu percebo perfeitamente. Lembro-me de antes da doença outras pessoas ficarem doentes e eu ficar aflita sem saber o que lhes dizer. (Em contrapartida o que não percebi foi nessa altura, uma fulana incompetente e sem um pingo de ética, ter vergonha de ficar sentada e não me dizer nada, porque no dia em que regressei e entrei na sala de professores, toda a gente veio ter comigo, dar beijinhos e falar, e essa fulana, com medo que reparassem que sendo coordenadora não me passava cartão, atravessou a sala de professores a fingir que me vinha falar e deu-me um encontrão... coisas surreais de gente repugnante... mas isso é uma linha de um capítulo de uma história diferente).
É verdade, como diz o artigo, que passamos a valorizar mais as pessoas e a ver mais as mesquinhices como aquilo que são.
Lembro-me de há uns 10 anos, um amigo me ter dito que tinha um cancro no sangue e que lhe tinham dado 5 anos de vida - nessa altura não sabia que os médicos, para terem uma referência na discussão dos prognósticos fazem estatísticas da porcentagem de doentes que ainda estão vivos 5 anos após o diagnóstico, de modo que levei aquilo à letra e fiquei aflita sem saber o que dizer. Ao princípio, quando nos fazem um diagnóstico e nos dizem essas coisas das taxas de sobrevivência (se perguntarmos), é sempre um choque (as dos pulmão são muito baixas mas já melhoraram um bocadinho com os tratamentos de imuno), mas depois temos de ultrapassar isso.
Nós, doentes oncológicos, também perguntamos uns aos outros, se temos confiança, 'quanto tempo te falta para os 5 anos e qual é a tua taxa de sobrevivência', embora hoje em dia com os tratamentos de imunoterapia e outros tratamentos, os cinco anos sejam mais uns sete anos.
Hoje em dia já não fico atrapalhada com a doença dos outros, é claro, e ajudo quem tem um diagnóstico recente, com a minha experiência da doença, para evitar que tenham que passar por coisas horríveis, desnecessariamente e para se prepararem para as necessárias. Esse amigo também me ajudou a mim que no início estava muito stressada com a doença. Também ajudo para desdramatizar, o que é fundamental senão a doença incapacita-nos do ponto vista psicológico, porque as doenças sequelas da doença e dos tratamentos e a ansiedade de sabermos que não temos nenhum controlo do que está ali dentro do corpo podem arrasar qualquer um que não se cuide. Conheço pessoas que sobreviveram à doença mas morreram por dentro. São uma sombra do que eram.
Enfim, não é que ande por aí a dizer a toda a gente o que tenho, mas quando me vêem ofegante depois de subir escadas ou uma ladeira e me perguntam o que tenho, eu digo, 'tenho um cancro no pulmão'. Ficam muito aflitos. Por exemplo, não digo aos alunos e eles não sabem, mas se um dia calhar perguntarem-me, sejam alunos ou colegas, não escondo nem minto. Não tenho que me envergonhar de ter uma doença e até me parece positivo que os miúdos percebam que podemos ter uma doença grave e não viver dobrados sobre o peso da situação.
Nestes anos a andar em médicos e em hospitais, nunca ouvi as palavras, 'cancro' ou 'tumor' de ninguém. Eu é que as digo, mas mais ninguém diz. Durante um tempo, na altura do diagnóstico, eu não percebi o que tinha, porque ninguém dizia as palavras. Diziam outras palavras e eu sou uma pessoa que vive das palavras e ligo muito às palavras que são ditas e as que não são ditas. Mesmo agora, falam em lesão, massa, sarcófago e outros termos afins, mas não aqueles.
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