A avaliação escolar tal como existiu e ainda existe, em grande parte, deve-se a uma noção de inteligência pré-Gardner, quando se reduzia a inteligência às capacidades lógico-matemáticas medidas em testes de Quoficiente de Inteligência constituídos por exercícios dessa natureza. Howard Gardner foi um psicólogo americano que acreditava que os testes de QI têm uma relevância limitada para a vida real. Segundo ele, há diferentes tipos de inteligência. Nascemos com todos esses tipos de inteligência mas por diversas razões temos umas mais desenvolvidas que outras, havendo extremos: pessoas que são geniais numa inteligência particular e pessoas que são muito pobres numa outra qualquer.
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Como vivemos num mundo cada vez mais quantificado e quantificador, computadorizado, a escola valoriza acima de tudo esse tipo de inteligência: a do cálculo e, ainda hoje, confunde a quantidade com inteligência e rigor e a qualidade com falta de inteligência e de rigor.
A avaliação escolar tem como primeiro fim uma pedagogia de crescimento e como segundo fim, a possibilidade de selecção de alunos - para a universidade, por exemplo.
Estes dois termos estão invertidos e quase toda a avaliação é pensada num contexto de selecção, estando o crescimento individual secundarizado.
Porém, a avaliação é, acima de tudo, um olhar exterior e objectivo sobre o nosso trabalho, por alguém especializado, que nos aponte os pontos fracos e fortes, os erros que necessitam de ser corrigidos e o nosso lugar relativo face a outros.
Por exemplo, um corredor dos 100 metros, vai melhorando, orientado por um treinador que repara nos erros e mostra como se corrigem e conta os tempos para o desportista poder melhorar face a si mesmo e ainda saber a que distância está dos melhores se quiser com eles competir.
Quando os alunos são treinados acima de tudo para a competição com os outros, especializam-se nas competências valorizadas pelos juízes da competição. Ora, se vivemos num mundo de profissões submissas a algoritmos e quantificações, essas são as competências em que a avaliação incide.
O discurso oficial da tutela da educação é o de abrangência: cidadania, ética, educação para os afectos etc., mas na prática, deixam essas qualidades para serem desenvolvidas numa disciplina à parte, para que não atrasem as disciplinas quantificadoras. Os professores são criticados se não usam tecnologias quantificadoras e o trabalho com recurso a tabelas e folhas de cálculo tornou-se um dogma. Confunde-se uniformidade com objectividade.
Uniformidade é fazermos tudo da mesma forma, é uma 'mesmidade', objectividade é sermos diferentes mas sabendo manter o olhar centrado no objecto.
Diria que que o conhecimento escolar, nas diversas disciplinas é mais, ou menos, protocolar: as disciplinas de ciências exactas e experimentais são extremamente protocolares -todos os alunos têm que adoptar os mesmos protocolos na resolução de problemas e há protocolos para tudo, logo, há pouco ou nenhum espaço para ser diferente e criativo; é a tal uniformidade que confundem com objectividade. Por isso os testes e relatórios são mais fáceis de corrigir nessas disciplinas: se os alunos aprenderam bem o protocolo, aquilo é tudo praticamente igual. Tem pouca interpretação pessoal.
Já as disciplinas de artes e humanidades, têm poucos protocolos. Existem cânones -a gramática das línguas e das artes- mas o trabalho tem muito de criatividade, de apropriação pessoal dos conceitos que, avaliada com os mesmos parâmetros das outras disciplinas estritamente protocolares, empobrece imenso, pois a natureza dessas disciplinas é passar fronteiras e não ficar apertado em coletes de forças protocolares. Não é mais nem menos fácil ou difícil, é de uma outra natureza e não devia estar submissa a avaliações apenas uniformizadoras, como está.
Os exames nacionais de humanidades estão quase reduzidos a escolhas múltiplas e respostas padronizadas para que a avaliação seja uniformizada e, por isso, são de uma grande pobreza.
É verdade que se introduziu na cômputo da avaliação a, 'avaliação contínua', mas na verdade, os parâmetros da avaliação continua são quase todos reduzidos a testes de padrão idêntico e uniformização e a avaliação dos alunos reduz-se, na esmagadora maioria, à média dos testes anuais.
Embora nós sejamos avaliadores, somos em primeiros lugar, professores, portanto, encaramos a avaliação, sobretudo, como oportunidade dos alunos crescerem.
Uma avaliação, para cumprir este fim de permitir as pessoas desenvolverem competências/inteligências e crescerem nelas, tem que ser diversificada: é preciso avaliar o modo como o aluno trabalha sozinho e em grupo, se é autónomo ou dependente; como age quando tem uma avaliação com consulta de documentos ou quando tem que recorrer apenas à memória dos conhecimentos; se aplica os conhecimentos a situação novas ou apenas é capaz de os utilizar em rotinas conhecidas; como explica/apresenta uma ideia ou um trabalho a outros: tem capacidade de síntese, encadeamento de ideias, explicitação de conceitos, etc; se é capaz de reunir os conhecimentos pertinentes numa situação de avaliação pontual, como um teste ou um exame; se é criativo ou repetitivo; se é capaz de relacionar conceitos ou matérias por si só; se é capaz de manter-se focado ou se se distrai; se desiste ao primeiro fracasso ou é capaz de perseverar; como lida com a tensão de momentos de avaliação únicos, etc.
Portanto, a avaliação tem que levar em conta as diversas competências das diversas inteligências. Porém, para os alunos melhorarem as suas competências nas diversas inteligências, é necessário que haja possibilidade de os treinar para tal: que aprendam metodologias de investigação, de construção de conceitos, de memória, de síntese, de desenvolvimento, de coerência, de introspecção, de relação social, de relação lógica, de perseverança, de cálculo.
Isto leva muito tempo, exige muito trabalho, muita experiência para condensar esta testagem em poucos momentos de avaliação, dado que o nosso tempo gasta-se em burocracias, reuniões, preenchimento de papelada e de tabelas. Muito mais trabalho e tempo requer depois o acerto do desenvolvimento do currículo para que cada aluno possa ir corrigindo os seus erros e desenvolvendo as suas competências fortes. Isto é impossível com 7 turmas ou mesmo 5. Seria o mesmo que um treinador desportivo treinar 7, ou mesmo 5 equipas ao mesmo tempo.
O que acontece é que aqueles cujas inteligências já estão, naturalmente ou pelo contexto, mais afinadas para o cálculo e a linguagem (que são as competências mais valorizadas na escola, porque subjazem a quase todas as outras que são por sua vez valorizadas nos cursos e profissões actuais) têm grande vantagem sobre os outros.
Quando atribuímos uma nota de classificação a um aluno, essa nota quantifica também qualidades, não é um mero cálculo de erros e acertos. Mesmo num teste de lógica proposicional que é constituído por exercícios para resolver segundo um protocolo e onde assinalamos, à frente de cada exercício, um sinal de certo ou errado, avaliamos competências qualitativas: o teste tem exercícios para a memória procedimental, mas tem também exercícios que avaliam a capacidade do aluno ser criativo na solução, e um exercício para a capacidade de ir mais além, tendo que pensar e relacionar para resolver uma situação inesperada.
Outras qualidades são avaliadas. Por exemplo, o investimento do aluno em sala de aula que é, talvez, o maior factor de sucesso escolar. Há alunos que investem no início do ano e depois vão esmorecendo, há outros que mantêm um nível de investimento contínuo e alto, há os que investem com criatividade, os que investem sem ruído mas com concentração e há os que não investem de todo. Avaliamos a progressão dos alunos nas diversas competências. é preciso que vejam que o esforço em corrigir o erro traduz-se no desenvolvimento das competências com sucesso.
Todas estas competências de inteligência têm importância na altura de escolher uma profissão ou seguir um curso. Queremos jornalistas que saibam sintetizar acontecimentos de modo objectivo; não queremos opinadores que influenciam mas não sabem pensar; não queremos engenheiros que desprezem o rigor dos pormenores ou políticos que não saibam lidar com a pressão ou médicos incapazes de pensar soluções para além dos protocolos ou professores que não saibam avaliar diferentes competências ou historiadores que não saibam avaliar documentos históricos, etc.
Por conseguinte, a avaliação deve ser uma conjugação de elementos qualitativos e quantitativos e dirigir-se para o crescimento individual e também para a selecção dos cursos e profissões. A universidade é uma especialização de um certo tipo de inteligência que nem todos têm desenvolvida e mais tarde, o trabalho que se faz, requer esse e outros tipos de inteligência que nem todos têm desenvolvida ou são capazes de desenvolver. Daí que haja quem entre para um curso com média de 18 e depois não consiga fazê-lo e também que faça um curso com grandes notas e depois seja medíocre na profissão.
O que a avaliação não podia e não devia ser é exactamente aquilo em que a transformaram: durante o básico, um aluno vai passando de ano mesmo que não desenvolva nenhuma das suas competências e, durante o secundário, quantificam-se as suas competências ao máximo para uniformizá-los de acordo com os protocolos valorizados pelos avaliadores da competição que são os exames.
É por isso que quem vem de um contexto/família que pode e sabe colmatar as falhas da avaliação escolar, safa-se e quem vem de um contexto/família que não pode e não sabe colmatar as falhas da avaliação escolar, pouco cresce.
Tudo isto porque cada vez mais se querem professores uniformes que trabalhem para uniformizar os alunos para poderem serem testados em testes e exames de avaliação discreta.
Tudo uma enorme incoerência.
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Este post é a continuação de
outro que escrevi no dia do professor, sobre este assunto, a partir da leitura de uma tese de doutoramento - Brolezzi,
A Tensão entre o Discreto e o Contínuo.
Discordo de parte do que o autor escreveu, reconhecendo que cometo uma heresia ao fazê-lo.
ReplyDeleteHoje, de manhã, no décimo ano, estava a perorar sobre as fases do português a propósito do tópico História e Evolução da Língua Portuguesa, os traços de cada fase, etc., e acabei a falar sobre o acesso à escolarização, a forma como a mulher foi impedida de aceder à Educação durante milénios, o modo como passou a aceder, a obter resultados e, mesmo assim, profissionalmente continuar a ser secundarizada, a forma paternalista e pacóvia como o Estado Novo tratava os alunos, fazendo de contas que os cantos IX e X de 'Os Lusíadas' não existiam por causa da bendita Ilha dos Amores e outras coisas mais.
Está previsto no programa? Não, mas falei nestes aspetos com os alunos.
Mais: como se faz? Porque toda esta teoria - lá está - tem de ser objetivada, para não ser tudo um "calhas". Parece-me que antes de tudo há que tratar de outras coisas, para não ter de ouvir que quem chegou à Lua foi uma cadela. Muita coisa se passou hoje nas aulas do 10.° AB...
Não percebo qual a parte do desacordo... não sei onde pode alguém ver que defendo que não deve haver objectividade e que quero que tudo seja 'ao calhas'... ademais o meu post é sobre avaliação e não sobre didáctica que é outra coisa diferente
ReplyDeleteO foco na didática tem a ver com avaliação, no sentido de que há coisas que não são mensuráveis. Ou seja, o que eu quis dizer é que há demasiado foco na avaliação e menos no que os alunos aprendem, sabem, pensam, conseguem realizar, etc.
DeleteTudo tem de ser avaliado: avalia, avalia, avalia... discordo disto e foi isso que quis dizer.
Tudo pode ser objecto de um critério de medida e os alunos precisam saber se estão a progredir nas aprendizagens. O tipo de avaliação é que tem de se adequar às competências que se avalia e não ser tudo uniforme. Não se avalia um exercício de lógica da mesma maneira que uma apreciação estética e o que se passa com os exames é que avaliam tudo da mesma maneira e com isso prejudicam os alunos, em particular os mais originais e criativos.
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