June 07, 2021

Duas palavras - 2ª catarse

 


Catarsis - é uma libertação, como quando se dança de alegria entre escombros, ao ter a notícia que a guerra terminou.

Catarse como 'purificação', do grego κάθαρσις (katharsis): num certo sentido que só os gregos sabiam expressar, tornar-se limpo, puro - a partir do adjectivo καθάρός (katharós), seres humanos recém-chegados ao mundo, não pela primeira vez mas uma outra vez.

A palavra difundiu-se de modo idêntico em quase todas as línguas, apesar das suas interpretações terem sido muito distintas. Na medicina, a partir de Hipócrates, 'catarsis' passou a ser desintoxicação do que contamina, material ou espiritualmente o corpo: de todo o 'miasma'.

Desde Pitágoras que a 'catarsis' foi, por outro lado, a resolução de um problema matemático. Na psicoterapia, segundo Freud e Brauer, é o alívio, a libertação da histeria ou de qualquer estado de ansiedade que só se alcança evocando e revivendo os acontecimentos que estiveram na origem da ansiedade. Nos ritos mágicos sem nenhum fundamento científico a palavra veio a significar, 'exorcismo'. Isso chama-se 'timo' etimológico. Catarsis não significa, como se diz muito, depurar ou drenar. Somos seres humanos, não pântanos.

De maneira mais simples, significa soltar, deixar que alguma coisa se vá. Qualquer dor ou sofrimento que se volte contra nós tem que ser agarrado e solto em algum sítio, para fora de nós. Os gregos faziam-no no teatro, que era um dever cívico e moral e não um entretenimento qualquer. É Aristóteles quem, na sua obra, A Poética, reflecte em como a 'mimeis' (a ficção, a imitação) do absoluto, da irracionalidade, da perda total de nós mesmos é fundamental para nos libertarmos dos nosso medos e inseguranças que, caso contrário, correm o perigo de transformar-se em demónios. Pense-se em Medeia, Clitemnestra, Édipo, Prometeu e seus trágicos destinos.

Nenhum ser humano é só bom ou só mau, todos somos uma infinita gama de tons cinza entre o preto e o branco. É muito melhor aceitar a nossa natureza imperfeita, irracional, representada num palco e deixar que aí se faça a 'catarsis'. A nossa época, que é um tempo de outono cultural que dura todo o ano e em que os teatros fecham ao mesmo ritmo que caem as folhas das árvores, esta palavra obriga à revolta e obriga a falar.

Para Platão, a 'catarsis' é a palavra, não como monólogo, mas como diálogo: pergunta, resposta, lógica, empatia, aceitação e compreensão - só o diálogo pode salvar-nos das trevas da alma. É preciso sair da obscuridade da nossa caverna.

Er, o herói arménio, depois de morrer no campo de batalha, levantou-se na pira já acesa, antes que o seu corpo fosse consumido pelas chamas e contou aos homens aquilo de que tinha sido testemunha no mundo dos mortos. Depois de uma caminhada de quatro dias pelo Inferno, as almas dos defuntos chegam à presença de Ανάνκε (Anánke), deusa da necessidade, cujo símbolo é um fuso. Junto dela estavam sentadas as suas três filhas, as Moiras: Cloto cantava o presente, Láquesis cantava o passado e Átropos, o futuro. Um arauto segurava uma cesta com todos os modelos e possibilidades de vida e avisava as almas de que seriam responsáveis pelo seu destino. Não era um sorteio, era uma escolha. 

Er deu-se conta da quantidade de vezes que os espíritos erravam na escolha movidos pela ingenuidade e irracionalidade. Por exemplo, quem na vida anterior tinha habitado uma polis bem governada escolhia habitar a de um tirano. Agaménon optou por viver como uma águia, para que, à sua vista agudíssima não se lhe escapasse traição alguma, enquanto Ulisses, cansado de tanto viajar, decidiu não mover-se mais. 

Depois de efectuar a sua escolha, cada alma recebia de Láquesis o seu daimon δαίμων, o génio tutelar que estava encarregue de vigiar se o sujeito cumpria a vida que tinha escolhido. Depois, o sujeito apresentava-se diante de Cloto para confirmar o seu destino e por fim ia a Átropos que o tornava imutável. 

As almas eram então encaminhadas através do deserto e do rio Lete (esquecimento) e depois de descansar nas margens de Amelete (despreocupação), todos, menos Er eram obrigadas a beber das águas de Lete. Os imprudentes bebiam demais para tentar esquecer as dores sofridas. O que mais surpreendeu Er foi ver que todas as almas escolhiam uma nova vida em função das experiências negativas sofridas na vida anterior, seguindo, estupidamente, condicionados pelo passado. 

Er desceu ao reino dos mortos para poder dizer no reino dos vivos: a desculpa de dizer, que 'as coisas sempre foram assim', não é válida. Se falarmos, soltamos o mal, deixamos que se vá na sua 'catarsis' final.

do livro, Etimologías Para Sobreviver Al Caos-  de Andrea Marcolongo, ed. taurus (com adaptações)
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Falar é uma actividade curativa, se o falar é um diálogo de ingénuos - pessoas livres que escolhem a palavra como instrumento de arqueologia, de liberdade e de compaixão. 



As três Moiras - túmulo de Alexander von der Mark por Johann Gottfried Schadow. Alte Nationalgalerie, Berlim.

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