June 07, 2021

Duas palavras - 1ª ingénuo

 


Etimologicamente, 'ingénuo' não significa o bobo, aquele que não tem dois dedos de testa. Também não é aquele que acredita no primeiro que lhe aparece à frente. Nem o que carece de engenho, do latim ingenium, a capacidade de inventar, projectar, descobrir coisas 'geniais': a profissão do engenheiro.

Etimologicamente, 'ingénuo' significa, aquele que nasceu livre e continua a sê-lo diariamente. Na Antiguidade, a palavra 'ingénuo' que deriva do substantivo latino, genus, 'estirpe', 'linhagem', designava aqueles que não eram escravos. Isto é, aqueles que não tinham que pedir permissão ou pedir, por favor'. Eram os que tinham direito a escolher, em virtude de ter um nome próprio, pois só os 'ingénuos' tinham direito a ter um nome e um apelido e, desse modo, a existir na realidade.

A palavra, que entrou no vocabulário italiano na primeira metade do século XIV e que se encontra também no espanhol, ingenuo, no francês, ingénu designa a vida simples, franca, sincera, digna do homem livre - o sentido negativo de, excessivamente confiante, que hoje damos a 'ingénuo', só surge a partir de 1795. 

A ingenuidade é, pois, liberdade. Quantas vezes demos bofetadas a nós mesmos, por assim dizer, por termos confiado em demasia, num amor, num desejo, numa cidade, num ponto de vista político?

Voltando à etimologia: por acaso não é natural e humano ter o direito e, até o dever, de sermos nós mesmos, tal como somos e também o direito de escolhermos e de nos equivocarmos? 

Somos 'geniais' quando decidimos ser 'ingénuos', ou seja, livres, sem montagens nem artifícios. Um dia pagaremos a conta. 'Estupendo, aqui tem e fique lá com o troco, vida.' Na verdade pagaremos o preço de ter amado, de ter odiado, de ter escolhido, enfim, de ter vivido.


O mar queima as máscaras

As incendeia no fogo do sal.

Homens cheios de máscaras

flamejam pelo litoral.


Tu só poderás resistir

na fogueira do Carnaval.

Só tu que sem máscaras

escondes a arte de existir.


(Giorgio Caproni - Antologia poética)


É melhor viver como ingénuos que disfarçados de Arlequim,  saltimbanco vestido de remendos de cores, conhecido em todas as tradições populares desde o século XVI - que de ingénuo não tem nada e está sempre metido em situações grotescas para seduzir a Colombina. Com o rosto sempre coberto de uma máscara negra, para fingir que é livre como seu amo, esse que de facto o é. A arte de existir não dispõe de maquilhagem ou de cabeleira postiça, diz-nos o étimo e o grande poeta de Livorno. Não é um circo nem um Carnaval. "Que vergonha quando nos obstinamos em viver como máscaras artificiais e como comediantes.'

do livro, Etimologías Para Sobreviver Al Caos - de Andrea Marcolongo, ed. taurus (com adaptações)

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Gosto deste significado da palavra 'ingénuo' que implica a arte de existir e viver livremente e de modo autêntico, sem artifícios, mesmo que isso signifique ser enganado, por vezes, ou enganar-se, o que não é a mesma coisa. Como dizia, Samuel Beckett, 'tentar, errar de novo, errar melhor'

Pierre, no Guerra e Paz, à luz deste sentido do termo ingénuo, tem uma existência mais plena que os outros, porque de facto tenta, erra bastante, mas não desiste e não perde a autenticidade nessa busca por um sentido para a existência.

Procurar ter um sentido para a existência e procurar ter uma vida boa são coisas diferentes - pode ter-se tido ou construído uma vida com sentido, mas não feliz; assim como se pode ter uma vida cheia de prazeres e felicidades, mas vazia de sentido e, portanto, em parte infeliz, se se tem consciência disso, porque não tendo, a questão do sentido não incomoda. 

Difícil é conseguir ambas: um sentido para a vida e, ao mesmo tempo, uma vida feliz. Agora, sem liberdade de escolha e sem autenticidade não se tem, nem uma coisa nem outra: porque a existência inautêntica retira sentido ao próprio sentido e o prazer postiço não é felicidade, é uma droga que mascara a ausência de felicidade.

O que leva à 2ª palavra: catarse.


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