Comprovarás como é salgado
o pão alheio e que duro caminho é
subir e descer as escadas dos outros
- Dante, Paraíso
Os tempos actuais, completamente diferentes dos passados, impõem a necessidade de adoptar uma postura: nem de direita, nem de esquerda, nem de centro, apenas humana. Somente disso se ocupa a linguística, "ciência humanista" por excelência: o estudo dos seres humanos através da sua maneira de nomear as coisas e, da sua mudança -involução ou evolução; pouco importa, não fazemos juízos- no decorrer dos tempos.
O verbo 'migrar' e o adjectivo 'migrante' descendem de uma raíz indo-europeia, 'mei-/moi-' que tinha, originariamente o significado de 'trocar', 'mudar'. Daí deriva o latino migrare e daí, por sua vez descendem, o substantivo munus, 'encomenda', 'oferta' (daí vem município) e o adjectivo, communis, comum.
Uma 'troca', um 'intercâmbio', segundo relata o étimo, sem nenhuma conotação geográfica de deslocação de um local para outro. Poderia tratar-se de uma cortesia, de um bem tangível como, 'tenho demasiadas maçãs verdes, troco-as pelas tuas laranjas maduras'; ou de ideias. Inclusive de palavras. Uma língua confinada nos bastiões dos dicionários das academias acaba por não nomear a realidade. Converte-se num mero catálogo de um tempo passado do qual o que fala a língua já não guarda memória alguma.
Se uma língua muda, ou melhor, 'muta', é porque está viva e vivos estão os que a falam. A palavra 'migar' leva consigo um sentido indefinido de mudança. E também uma grande carga de perda, abandono e dor.
Recentemente pusemos-nos a 'odiar' ou 'detestar' os seres humanos que chegam a 'nossa casa' ao ponto de obscurecermos por completo a ausência que 'em suas casas', necessariamente, tiveram de deixar.
Passo por alto, voluntariamente, a mesquinhez das polémicas contemporâneas acerca dos migrantes, seres humanos acusados de divertir-se cruzando os mares pelo gosto de exportar para outros locais os gestos de culturas primitivas e ameaçadoras. Fico-me no meu pequeno jardim, a linguística. E o grego antigo.
Resulta paradoxal comprovar como, há milénios, faltam da língua clássica de Platão, Ésquilo ou Tucídides, algumas peculiaridades maravilhosas - desde a aorista até ao opcional-, todas elas perdidas desde que se transformou em κοίνη διάλεκτος (koiné diálektos), na 'língua comum' que, desde os tempos de Alexandre, que estendeu o grego até às mais remotas regiões da Europa, África e Ásia. Da mesma maneira resulta paradoxal comprovar como nunca se deixa de elogiar o que o grego nos trouxe, até hoje, por ter 'migrado' para todas as línguas, europeias e não-europeias.
'Migrante', ou melhor 'emigrante', tem sido esta língua, nascida num território restrito da Ática e pré-destinada à conquista intelectual do mundo. Hoje acusa-se o inglês de gerar muitos neologismos que contaminam as nossas línguas latinas, mas quem acusaria o grego de ter feito o mesmo? Alguém grita pelas palavras perdidas nas línguas originais, desde o etrusco ao antigo germânico, substituídas por vocábulos gregos? Não foi dada a impressão de que se tratou de uma sublimação, de uma troca necessária?
A palavra, 'migrante' passou a fazer parte das línguas latinas como empréstimo medieval, a partir do francês, émigrer.
Durante muito tempo ninguém teve necessidade de apontar o dedo linguístico a quem tinha 'migrado' para aqui, palavra que aparece no vocabulário italiano só em 1846; porém, muitas pessoas, anteriormente, tiveram necessidade de contar que haviam 'e-migrado' para além.
"Deixarás todas as coisas queridas / com mais ternura", diz Cacciaguida, o cruzado, a Dante, no Paraíso.
Para o poeta empenhado na subida ao Paraíso não se trata apenas de uma profecia acerca do seu destino pessoal, que será o de exilado. É também um testemunho directo do que viveu quase dois séculos antes de Dante, da dor que, 'mudando' deixa atrás e do seu pão tão amado, que outro morderá, enquanto ele mordisca uma comida de sabor desconhecido, preparada por mãos estranhas.
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