June 13, 2021

duas palavras - 1ª migrante

 


Comprovarás como é salgado

o pão alheio e que duro caminho é

subir e descer as escadas dos outros

      - Dante, Paraíso


Os tempos actuais, completamente diferentes dos passados, impõem a necessidade de adoptar uma postura: nem de direita, nem de esquerda, nem de centro, apenas humana. Somente disso se ocupa a linguística, "ciência humanista" por excelência: o estudo dos seres humanos através da sua maneira de nomear as coisas e, da sua mudança -involução ou evolução; pouco importa, não fazemos juízos- no decorrer dos tempos.

O verbo 'migrar' e o adjectivo 'migrante' descendem de uma raíz indo-europeia, 'mei-/moi-' que tinha, originariamente o significado de 'trocar', 'mudar'. Daí deriva o latino migrare e daí, por sua vez descendem, o substantivo munus, 'encomenda', 'oferta' (daí vem município) e o adjectivo, communis, comum.

Uma 'troca', um 'intercâmbio', segundo relata o étimo, sem nenhuma conotação geográfica de deslocação de um local para outro. Poderia tratar-se de uma cortesia, de um bem tangível como, 'tenho demasiadas maçãs verdes, troco-as pelas tuas laranjas maduras'; ou de ideias. Inclusive de palavras. Uma língua confinada nos bastiões dos dicionários das academias acaba por não nomear a realidade. Converte-se num mero catálogo de um tempo passado do qual o que fala a língua já não guarda memória alguma.
Se uma língua muda, ou melhor, 'muta', é porque está viva e vivos estão os que a falam. A palavra 'migar' leva consigo um sentido indefinido de mudança. E também uma grande carga de perda, abandono e dor.

Recentemente pusemos-nos a 'odiar' ou 'detestar' os seres humanos que chegam a 'nossa casa' ao ponto de obscurecermos por completo a ausência que 'em suas casas', necessariamente, tiveram de deixar.

Passo por alto, voluntariamente, a mesquinhez das polémicas contemporâneas acerca dos migrantes, seres humanos acusados de divertir-se cruzando os mares pelo gosto de exportar para outros locais os gestos de culturas primitivas e ameaçadoras. Fico-me no meu pequeno jardim, a linguística. E o grego antigo.

Resulta paradoxal comprovar como, há milénios, faltam da língua clássica de Platão, Ésquilo ou Tucídides, algumas peculiaridades maravilhosas - desde a aorista até ao opcional-, todas elas perdidas desde que se transformou em κοίνη διάλεκτος (koiné diálektos), na 'língua comum' que, desde os tempos de Alexandre, que estendeu o grego até às mais remotas regiões da Europa, África e Ásia. Da mesma maneira resulta paradoxal comprovar como nunca se deixa de elogiar o que o grego nos trouxe, até hoje, por ter 'migrado' para todas as línguas, europeias e não-europeias. 

'Migrante', ou melhor 'emigrante', tem sido esta língua, nascida num território restrito da Ática e pré-destinada à conquista intelectual do mundo. Hoje acusa-se o inglês de gerar muitos neologismos que contaminam as nossas línguas latinas, mas quem acusaria o grego de ter feito o mesmo? Alguém grita pelas palavras perdidas nas línguas originais, desde o etrusco ao antigo germânico, substituídas por vocábulos gregos? Não foi dada a impressão de que se tratou de uma sublimação, de uma troca necessária?

A palavra, 'migrante' passou a fazer parte das línguas latinas como empréstimo medieval, a partir do francês, émigrer
Durante muito tempo ninguém teve necessidade de apontar o dedo linguístico a quem tinha 'migrado' para aqui, palavra que aparece no vocabulário italiano só em 1846; porém, muitas pessoas, anteriormente, tiveram necessidade de contar que haviam 'e-migrado' para além.

"Deixarás todas as coisas queridas / com mais ternura", diz Cacciaguida, o cruzado, a Dante, no Paraíso

Para o poeta empenhado na subida ao Paraíso não se trata apenas de uma profecia acerca do seu destino pessoal, que será o de exilado. É também um testemunho directo do que viveu quase dois séculos antes de Dante, da dor que, 'mudando' deixa atrás e do seu pão tão amado, que outro morderá, enquanto ele mordisca uma comida de sabor desconhecido, preparada por mãos estranhas.

do livro, Etimologías Para Sobreviver Al Caos de Andrea Marcolongo, ed. taurus (com adaptações)

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