June 12, 2021

A democracia não se vê só nas urnas

 


Um dos aspectos que faz de Lisboa uma cidade com tanto encanto é ter conseguido manter a sua traça e a sua atmosfera doce. Tem mantido essas duas características com a prudência de não deixar que a arquitectura agrida o espírito da cidade e retire a luz que a envolve. 

Tenho pena que não se reconheça ainda a arquitectura como uma das vertentes mais importantes no bem-estar e qualidade de vida das pessoas.

Vem isto a propósito de uma intervenção num monumento onde estive na semana passada e um edifício relativamente recente, ambos em Lisboa, que me parecem ir contra a prudência, sendo que um deles me choca mesmo. Falo da intervenção no Torreão do Palácio da Ajuda e do novo Museu dos Coches.

Eu bem sei que os arquitectos gostam de dizer que o povo não percebe nada de arquitectura e que por isso não têm que levar em conta a posição do povo, mas isso, não só é incorrecto como anti-democrático. Seria o mesmo que dizer que como o povo não percebe nada de leis não deve ser ouvido acerca delas. 

A arquitectura modifica a cidade e a cidade é de todos e não apenas dos arquitectos.

No que me diz respeito, julgo a arquitectura com alguns critérios:

1. A obra apela-me, faz-me sentir viva, por assim dizer, interpela-me, faz-me olhar para ela, provoca-me, puxa-me? Ou, pelo contrário, repele-me, agride-me, faz-me sentir opressão, fechamento ou ainda, é monótona, indiferente, não cativa?

2. A obra é coerente com o espaço que ocupa?

3. A obra não é coerente com o espaço envolvente mas brinca com ele e o contraste torna ambos mais vivos?

4. A obra é coerente com o conteúdo?

Pois nestes dois casos referidos, as respostas àquelas perguntas são todas negativas.

No que respeita à intervenção no Torreão do Palácio da Ajuda:

Este H que puseram em frente da fachada do Palácio não tem continuidade com o resto do edifício. É monótono,  desinteressante e incoerente com o conteúdo - na verdade parece ser uma placa de um dos edifícios da Caixa Geral de Depósitos 'colada' aqui).
Não dignifica o palácio. 
O Torreão é particularmente feio. Olho para ele e vejo espigueiros transmontanos empilhados uns em cima de outros e toda a coisa me repele.
- espigueiro do Norte

O outro edifício é o do novo Museu dos Coches. Os lisboetas manifestaram-se formalmente contra o projecto, mas a Câmara não deu importância à posição e vontade dos moradores da cidade e entendeu valorizar o arquitecto brasileiro. Foram 40 milhões para o museu.


O novo museu é um bloco, um paralelepípedo fechado como se uma pedra brutal e de tamanho gigantesco tivesse aterrado na cidade e, por azar, tivesse ido cair numa zona de construção baixa, em declive a descer suavemente para o rio e ficasse ali a tapar a vista.
Não tem coerência com o espaço que o envolve, também não o provoca ou brinca com ele. Isto estaria bem, talvez, em Brasília, um espaço muito aberto, estendido e amplo, mas não aqui, uma zona residencial pequenina e mimosa.
Um projecto que o arquitecto diz que era para renovar toda aquela zona de Belém, não envolve as pessoas, pois é um shopping fechado que ocupa um quarteirão inteiro com lojas e restaurantes.
Dizem-me que por dentro os coches estão lá postos com se fossem objectos de arte contemporânea.

Isso ao certo não sei porque de cada vez que passo ali sinto agressão e o edifício repele-me como um tumor, uma coisa que está ali viva mas a invadir malignamente e, por isso, ainda não consegui obrigar-me a ir ver.

O edifício retirou o encanto rosado e a luz doce de toda aquela zona e enfia ali uma coisa bruta.

E que coerência tem com o seu conteúdo?

A democracia não se vê apenas na hora de ir colectar votos às urnas para poder ocupar cargos e ir gastar o dinheiro do povo. Vê-se no respeito pelas pessoas, pelas suas vidas quotidianas. Os edifícios ocupam espaços públicos e o público não pode ser completamente ignorado como se não tivesse que viver nos espaços.

Tenho pena que não se reconheça ainda a arquitectura como uma das vertentes mais importantes no bem-estar e qualidade de vida das pessoas. Vi, aqui nesta cidade que não é a minha, mas onde moro, como se feriu o espaço público em vinte anos. Uma cidade naturalmente tão bem disposta junto a uma serra linda e um rio com uma baía tão bonita, toda construída com brutalidade de costas voltadas para o rio e a cortar-lhe a luz. A arquitectura, sendo uma arte, pode fazer-nos sentir bem e vivos, na cidade, como pode, sendo má, fazer-nos sentir apertados, oprimidos e deprimidos. Viver numa cidade onde dá gosto viver e onde há beleza envolvente, torna as pessoas mais alegres e produtivas.

Isso e não apenas a opinião dos arquitectos que querem fazer experiências e deixar o seu nome, tem que ser levado em conta. Este edifício do no Museu dos Coches, de cada vez que passo por ele, fico negativamente incomodada com a brutalidade daquilo naquele espaço outrora aprazível. 

(nenhuma das imagens é minha)


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