Uma teoria que ultrapasse o capitalismo e o marxismo nos seus erros históricos: um de tudo submeter à lógica individualista do lucro e outro de tudo submeter à tirania das massas - um e outro, simultaneamente a relegarem o valor humano para o fim da escala de prioridades.
Crítica de Richard King
A antiga maldição chinesa "Que vivas em tempos interessantes" foi levada ao máximo em 2020. De acordo com os instrumentos do Google, o uso da frase atingiu o pico em Março desse ano, tal como os casos mundiais confirmados de COVID-19 passaram a marca dos 100.000.Invocações da maldição foram especialmente populares no seio da comunidade empresarial, que já se encontrava a recuperar de choques tanto na oferta como na procura e a enfrentar a perspectiva de seis meses ou mais de economia em suporte de vida assistida.
Não que todos dentro dessa comunidade esperassem um regresso a tempos desinteressantes. Será que sonhei, ou foi Jeff Bezos gravado numa orgia na sua propriedade em Washington a invocar o ditado alternativo de Mao, "Tudo sob o céu está num caos total! A situação é excelente!'? Acho que a sonhei.
Teria de se ser niilista, claro, para não desejar o fim de uma pandemia que já custou bem mais de dois milhões e meio de vidas. Mas para aqueles de nós interessados em "tempos interessantes" e nas oportunidades que se abrem, a resposta global à COVID-19 não tem sido sem a sua dose de excitação política.
Teria de se ser niilista, claro, para não desejar o fim de uma pandemia que já custou bem mais de dois milhões e meio de vidas. Mas para aqueles de nós interessados em "tempos interessantes" e nas oportunidades que se abrem, a resposta global à COVID-19 não tem sido sem a sua dose de excitação política.
Com os rendimentos a murcharam, ou secaram completamente, muitas pessoas ressentiram-s com o grau com que as suas vidas são governadas por proprietários não produtivos - rendas e hipotecas, principalmente, cujos lucros são aspirados por um sistema de propriedade parasitária e pelos financiadores que se sentam em cima dele.
Ao mesmo tempo, a mão invisível do mercado demonstrou ser irrelevante para as necessidades de uma sociedade em crise, enquanto que a velocidade com que a economia se afundava, revelou o absurdo básico de um sistema baseado na escolha do consumidor.
Num discurso à ONU em Setembro de 2019, Greta Thunberg tinha-se lançado contra o "business as usual" e os "contos de fadas do crescimento económico eterno", e de finais de 2019 ao início de 2020 o mundo inteiro assistiu horrorizado ao fumo dos fogos florestais australianos enrolados à volta da Terra.
Acho que não estou a romantizar os acontecimentos quando sugiro que as primeiras semanas da pandemia foram acompanhadas por um pensamento de, escrever direito por linhas tortas, a possibilidade de uma reavaliação das condições existentes.
À medida que os miúdos se amontoavam na mesa da cozinha com os seus livros de exercícios e computadores portáteis, aqueles que tinham a sorte de estar a trabalhar a partir de casa ficavam muitas vezes satisfeitos por os ter por perto. Outros trabalharam nas suas casas e jardins, assumindo projectos há muito negligenciados. Outros ainda descobriram novos passatempos e interesses. Além disso, começámos a reflectir sobre a questão de saber o que era importante para nós e porquê.
Em muitos aspectos, as tecnologias digitais foram uma dádiva, mas não substituíram a presença física de outros e certamente não foram 'outros significativos'. O que nos escapou disse-nos algo sobre o que somos: não as unidades calculistas da lenda neoliberal, mas antes seres sociais, cuja sociabilidade é a condição prévia da nossa individualidade. Por outras palavras, sentimos a falta do outro.
Também começámos a ver-nos a uma nova luz. Num post amplamente partilhado no blogue do Centro de Investigação de Economia Política, Will Davies sugeriu que a contradição central do capitalismo -o que alguém faz e o que vale no mercado- se tinha tornado subitamente visível, mudando a forma como pensamos acerca do trabalho e do seu valor para a comunidade:
Depois há a questão de como valorizar o trabalho, uma vez que o mercado de trabalho já não é a base principal para a distribuição do reconhecimento social e o Estado nacionalizou efectivamente grande parte dele.
As sociedades capitalistas estão agora praticamente unidas no reconhecimento do facto de que os trabalhadores em serviços essenciais, tais como supermercados, correios, trabalho de cuidados, manutenção de serviços públicos e, acima de tudo, saúde, têm sido considerados como garantidos e mal pagos há demasiado tempo. A distinção entre estes empregos e muitos dos, trabalhos de tanga, que David Graeber critica, parece agora evidente. As diferenças salariais podem ser debatidas e criticadas mais aberta e amplamente nestas circunstâncias, e parece uma oportunidade única para levantar a questão do aumento progressivo dos impostos sobre o rendimento e a riqueza... Por enquanto, existe um palpável sentido de solidariedade entre o público e os trabalhadores "essenciais".
Muitos trabalhadores dos supermercados viram-se receptores de comportamentos baixos nesses primeiros dias, quando o 'Grande Pânico do Papel Higiénico' se instalou. Mas também houve muita gratidão à mistura. Os trabalhadores da saúde foram aplaudidos nas ruas e por sua vez aplaudiram os auxiliares hospitalares.
Muitos trabalhadores dos supermercados viram-se receptores de comportamentos baixos nesses primeiros dias, quando o 'Grande Pânico do Papel Higiénico' se instalou. Mas também houve muita gratidão à mistura. Os trabalhadores da saúde foram aplaudidos nas ruas e por sua vez aplaudiram os auxiliares hospitalares.
Martin Luther King Jr. previu este momento", escreveu Gene Sperling no New York Times em Abril de 2020, referindo-se ao apoio de King à greve dos trabalhadores de saneamento de 1968. Um dia', disse King aos grevistas em Memphis, 'a nossa sociedade virá a respeitar o trabalhador do saneamento se quiser sobreviver, pois a pessoa que recolhe o nosso lixo, em última análise, é tão significativa como o médico, pois se não fizer o seu trabalho, as doenças são galopantes'.
Mais uma vez, e para toda a legislação anti-sindical, retórica e punitiva dos governos aos desempregados, não me parece uma idealização sugerir que algo como esse sentimento tenha estado à solta na primeira metade de 2020.
Durante algum tempo, então a pandemia desafiou a forma como pensamos sobre o trabalho. Tempos interessantes, de facto. Mas que lições poderemos tirar deles, de modo a que "o novo normal" seja uma melhoria em relação ao antigo?
Uma forma de começar a abordar esta questão é considerar que tipos de trabalho foram estimados nas décadas que antecederam este ponto em que estamos e como e porque foram tão valorizados.
Durante algum tempo, então a pandemia desafiou a forma como pensamos sobre o trabalho. Tempos interessantes, de facto. Mas que lições poderemos tirar deles, de modo a que "o novo normal" seja uma melhoria em relação ao antigo?
Uma forma de começar a abordar esta questão é considerar que tipos de trabalho foram estimados nas décadas que antecederam este ponto em que estamos e como e porque foram tão valorizados.
A este respeito, The Tyranny of Merit, do americano Michael Sandel e Head Hand Heart, do britânico David Goodhart, servem como um ponto de partida útil.
Ambos os livros se preocupam com o que Goodhart chama "meritocracia cognitiva" - uma frase útil na medida em que liga um sistema moral a uma forma particular de trabalho, que por sua vez está ligado a um período particular de mudança socioeconómica.
Tanto para Sandel como para Goodhart, este sistema que temos tido corroeu a solidariedade social, aumentou as desigualdades e precipitou o aumento do populismo de direita. Precisamos, escreve Sandel, de um "ajuste de contas" com esse sistema, como parte de uma re-calibração mais ampla do estatuto e do valor do trabalho.
O seu criador foi o socialista e sociólogo britânico Michael Young, cujo livro de 1958, The Rise of the Meritocracy foi, supostamente, uma história da Grã-Bretanha contada a partir do ano 2033.
Escrevendo numa altura em que o velho sistema de classes britânico e a lógica que o sustentava começavam a ruir, Young viu como a ideia emergente de uma sociedade baseada no mérito - uma em que o 'QI + esforço' substituíssem o nepotismo e o clientelismo - apelaria a muitas pessoas da classe trabalhadora ansiosas por escapar ao trabalho manual, mal remunerado. No entanto, também viu como esse sistema emergente daria origem a uma nova lógica moral, na qual as desigualdades de riqueza se justificavam com base no esforço individual.
Young sugeria que a arbitrariedade moral e manifesta injustiça do 'status quo' tinham pelo menos este efeito desejável: moderava a auto-estima da classe alta e impedia a classe trabalhadora de ver o seu estatuto subordinado como um fracasso pessoal". Além disso, saber que o sistema era manipulado permitiu à classe trabalhadora opor-se a ele - na verdade, opor-se-lhe como uma classe (daí o velho imperativo da classe trabalhadora de se elevar com a sua classe, não acima dela). Para Young, "a meritocracia" não permitiria tal recurso. Deixaria a classe operária 'moralmente nua'.
Chamar profético a The Rise of the Meritocracy seria subestimá-lo, dado que, na realidade, forneceu ao liberalismo o conceito de que necessitava para libertar o capitalismo das suas associações mais obscuras.
Chamar profético a The Rise of the Meritocracy seria subestimá-lo, dado que, na realidade, forneceu ao liberalismo o conceito de que necessitava para libertar o capitalismo das suas associações mais obscuras.
Emoldurado como uma resposta ao privilégio da classe alta, o conceito encontrou a sua mais completa articulação, não sob os governos neoliberais de direita de Margaret Thatcher e Ronald Reagan, mas sob os governos de centro-esquerda de Paul Keating, Bill Clinton, Tony Blair e Gerhard Schroder, que poderiam recorrer ao seu compromisso com a educação pública como uma forma de quadratura do círculo entre uma economia amplamente neoliberal e um ethos mais igualitário.
Assim, a mudança do risco ("flexibilidade") de empregador para empregado poderia ser caracterizada como uma aspiração e a educação ligada ao esforço, como na frequentemente repetida dupla de Clinton, "Quanto mais se aprende, mais se ganha". Como Thomas Frank demonstra em Listen, Liberal (2016), um efeito deste processo tem sido o de ligar a política progressista às classes profissionais
A sociedade meritocrática prevista simplesmente ainda não se concretizou. Nem poderia, numa sociedade em que a riqueza familiar e várias formas de preconceito continuam a exercer influência. É verdade, cientistas políticos como Charles Murray argumentaram que a meritocracia é compatível com a baixa mobilidade social, citando a hereditariedade da inteligência e o "acasalamento selectivo" como factores estabilizadores (Goodhart brinca com esta ideia, que é essencialmente a de que as pessoas inteligentes tendem a casar com outras pessoas inteligentes e, portanto, a produzir filhos inteligentes).
A sociedade meritocrática prevista simplesmente ainda não se concretizou. Nem poderia, numa sociedade em que a riqueza familiar e várias formas de preconceito continuam a exercer influência. É verdade, cientistas políticos como Charles Murray argumentaram que a meritocracia é compatível com a baixa mobilidade social, citando a hereditariedade da inteligência e o "acasalamento selectivo" como factores estabilizadores (Goodhart brinca com esta ideia, que é essencialmente a de que as pessoas inteligentes tendem a casar com outras pessoas inteligentes e, portanto, a produzir filhos inteligentes).
Mas isto está muito longe do que os avatares da política da Terceira Via assinaram, ou pediram aos seus eleitorados que assinassem, quando insistiram que as suas prioridades eram "educação, educação, educação" (Blair) ou garantiram aos trabalhadores despedidos no Midwest americano que seriam requalificados como programadores informáticos, agora que os seus empregos tinham sido deslocados (Clinton). Como observa Sandel, existe actualmente mais mobilidade social na China do que nos EUA. Bem, pelo menos o 'Sonho Americano' está vivo algures.
Portanto, a meritocracia que temos ou é imperfeita ou autodestrutiva. Mas para Sandel e Goodhart e,, na verdade para Young, é menos a possibilidade de meritocracia do que os princípios subjacentes que são significativos, dado que o seu objectivo central não é erradicar a desigualdade material mas justificá-la em nome da "igualdade de oportunidades". Mesmo que fosse possível criar condições equitativas nas regiões montanhosas do capitalismo tardio, deixaria ainda inúmeras pessoas à margem.
Portanto, a meritocracia que temos ou é imperfeita ou autodestrutiva. Mas para Sandel e Goodhart e,, na verdade para Young, é menos a possibilidade de meritocracia do que os princípios subjacentes que são significativos, dado que o seu objectivo central não é erradicar a desigualdade material mas justificá-la em nome da "igualdade de oportunidades". Mesmo que fosse possível criar condições equitativas nas regiões montanhosas do capitalismo tardio, deixaria ainda inúmeras pessoas à margem.
Este é o cerne da ética meritocrática. Celebra a liberdade - a capacidade de controlar o meu destino através de trabalho árduo - e a meritocracia. Se sou responsável por ter acumulado uma bela parte dos bens mundanos - rendimento e riqueza, poder e prestígio - devo merecê-los. O sucesso é um sinal de virtude. A minha riqueza é o meu dever.
É um pequeno passo daqui até à "teologia da prosperidade" que celebra a riqueza como manifestação de virtude superior e Sandel observa também a forma como esta equação se desenrola a nível nacional, como a ligação entre prosperidade/poder dos EUA e o seu papel "providencial" na história. Os EUA são grandes porque são bons e Deus ajude aqueles que entram no seu caminho.
O argumento de Sandel contra a meritocracia tem duas partes. A primeira parte aborda a questão da sorte e da justiça. A meritocracia afirma recompensar indivíduos de acordo com as suas capacidades; mas como não somos responsáveis pelas capacidades com que nascemos, nem pelo facto de nascermos em sociedades que valorizam essas capacidades, não é moralmente claro porque é que as pessoas que as possuem devem ser recompensadas pelos seus sucessos.
Ian Thorpe pode ter sido obediente, mas também tem pés como barbatanas e por acaso nasceu na Austrália, que reverencia os seus nadadores de primeira linha como heróis. E o que vale para Thorpedo vale também para o professor universitário com o QI elevado: uma vez que a capacidade cognitiva parece ser parcialmente hereditária, o seu sucesso não pode ser atribuído apenas ao esforço.
A segunda parte do caso de Sandel contra a meritocracia é a mais grave e vai para a "tirania" do seu título. Esta é a ideia de que a meritocracia, mesmo que pudesse ser demonstrada como justa, não produziria uma sociedade "boa", porque o seu efeito é racionalizar a desigualdade, criando uma presunção de que as pessoas recebem o que merecem e assim aprofundando o fosso entre ricos e pobres.
A segunda parte do caso de Sandel contra a meritocracia é a mais grave e vai para a "tirania" do seu título. Esta é a ideia de que a meritocracia, mesmo que pudesse ser demonstrada como justa, não produziria uma sociedade "boa", porque o seu efeito é racionalizar a desigualdade, criando uma presunção de que as pessoas recebem o que merecem e assim aprofundando o fosso entre ricos e pobres.
Faz-se um juízo que torna o 'vencedor' arrogante e os 'perdedor' desesperado. Assim, o mantra folclórico de Scott Morrison, "se tiveres uma oportunidade, tens uma oportunidade", não é meramente congruente com a violência social evidenciada em algo como o escândalo "Robodebt"; torna tal violência possível. Mesmo nas mãos de administrações mais atenciosas, a meritocracia é um credo brutal. Como o próprio Young diz num artigo no The Guardian, escrito no auge da experiência do 'Novo Trabalho', 'é de facto difícil numa sociedade que faz tanto alarde do mérito ser julgado como não ter nenhum'.
Porque a essência da meritocracia moderna é a ligação entre a educação e o esforço, uma das suas principais manifestações sociais é o fenómeno do 'credencialismo' - a crença de que as qualificações académicas ou outras qualificações formais são a melhor medida da inteligência ou capacidade de uma pessoa para fazer um determinado trabalho.
Porque a essência da meritocracia moderna é a ligação entre a educação e o esforço, uma das suas principais manifestações sociais é o fenómeno do 'credencialismo' - a crença de que as qualificações académicas ou outras qualificações formais são a melhor medida da inteligência ou capacidade de uma pessoa para fazer um determinado trabalho.
Tanto para Sandel como para Goodhart, um efeito desta crença tem sido o de minar a dignidade associada a outras formas de trabalho, ou seja, o trabalho que requer menos capacidades de pensamento cognitivo.
Os políticos e formadores de opinião ajudam neste processo de minar, borrifando os seus discursos e artigos com uma linguagem que reverte implicitamente o cognitivo sobre o manual ou sobre o emocional. (Sandel nota em particular a proeminência do adjectivo "inteligente", como em "smartphones", "carros inteligentes", "bombas inteligentes", etc.)
Enquanto no passado tais figuras públicas podem tr alcançado uma linguagem de juízo diferente, baseada em contrastes avaliativos alternativos (justo contra injusto, livre contra dominado, forte contra fraco, aberto contra fechado), hoje "o contraste avaliativo reinante" (Sandel) é entre inteligência e ininteligência. Tal linguagem é implicitamente tecnocrática, uma vez que "a coisa inteligente a fazer aponta quase sempre para uma razão prudencial ou de interesse próprio que não depende de considerações morais". No entanto, disfarça um juízo duro - que marginaliza outras formas de trabalho e alimenta preconceitos contra os membros menos instruídos da sociedade.
Sandel é um filósofa da tradição comunitária. Como tal, é um crítico astuto das ideias liberais e uma das coisas mais impressionantes sobre A Tirania do Mérito é a forma forense como anatomiza diferentes tradições dentro do liberalismo. Demonstra como estas tradições tendem a dar origem a atitudes meritocráticas, mesmo quando a tradição em questão rejeita ostensivamente o mérito como princípio organizador (como, por exemplo, tanto o neoliberalismo Hayekiano como algumas formas de liberalismo social fazem).
A sua contribuição mais importante, no entanto, é a forma como estabelece uma base diferente para a valorização do trabalho e das pessoas que o fazem. Discutindo em particular o modelo de "justiça distributiva" do liberalismo associado ao filósofo John Rawls, Sandel sugere que o que as pessoas querem não é apenas mais igualdade material, mas também uma sensação de que estão a contribuir para a sociedade, e são respeitadas por o fazerem.
Esta é a base do que ele chama "justiça contributiva", e vai ao encontro do problema central, na sua opinião, do "liberalismo assistencialista" bastante desumano de Rawls, que é o de ser incapaz de estabelecer um princípio moral suficientemente convincente ou robusto para gerar o tipo de solidariedade social necessária para que a democracia social floresça. Pelo contrário, a "ética centrada no produtor" de Sandel vê o trabalho como "uma actividade socialmente integradora" - uma "arena de reconhecimento" através da qual honramos as nossas obrigações mútuas. Sugere que "somos plenamente humanos quando contribuímos para o bem comum e ganhamos a estima dos nossos concidadãos pelas contribuições que fazemos".
Para Sandel e para outros na tradição comunitária, mesmo o liberalismo social concede demasiado ao seu progenitor clássico, reproduzindo o erro principal do liberalismo (que é também, historicamente, a sua maior força) - a sua ênfase no indivíduo. Para Sandel, a nossa socialidade é anterior à nossa individualidade e a forma como encaramos o trabalho deve reflectir esse facto. O trabalho não é apenas um meio para atingir um fim; é um aspecto irredutível da nossa humanidade, na medida em que nos permite satisfazer o que ele descreve como "a necessidade humana fundamental a ser necessária".
David Goodhart concordaria com grande parte da análise de Sandel. Certamente que ele levaria em conta que os progressistas são hoje em dia frequentemente demasiado acríticos em relação a certos tipos de individualismo.
O seu livro anterior The Road to Somewhere (2017) foi escrito na sequência do desastre de Brexit e argumentava que uma classe frequentemente desdenhosa de formas mais colectivas de compreensão (incluindo nacionalismo e até patriotismo) se tinha tornado perigosamente distante daqueles fora do seu próprio mundo de vida. Isto levou-o à polémica com progressistas, até porque ele próprio é um progressista e foi considerado como estando a dar munições ao inimigo; mas não há dúvida de que ele tinha detectado algo importante na forma como o "duplo liberalismo" da classe do conhecimento, cada vez mais poderosa - uma ênfase na abertura e individualismo, tanto em questões económicas como culturais - tinha dado origem ao seu oposto: uma política de "muros", efectivamente, em que sentimentos mais nacionalistas, tanto a nível económico como cultural, estavam a ganhar entre os que ficaram para trás na grande transição de uma economia industrial para uma economia (global) pós-industrial.
Para Goodhart, Brexit era uma manifestação desta política - uma visão populista do mundo expressando uma preferência pelo local e pelo familiar, face a uma visão dominante "Anywhere" que enfatizava a abertura e a flexibilidade.
Para Goodhart, tal como para Sandel, esta nova divisão vira-se não só, ou mesmo principalmente, para a desigualdade material, mas também para questões de estatuto e (auto-)estima, especialmente porque se relacionam com o credencialismo e a meritocracia no centro da nossa actual "hierarquia de estatuto". Em Head Hand Heart, desenvolve esta ideia, ligando-a à distinção do antropólogo Ralph Linton, entre a identidade 'alcançada' e a identidade 'atribuída'. Assim, a identidade 'alcançada':
Para Goodhart, tal como para Sandel, esta nova divisão vira-se não só, ou mesmo principalmente, para a desigualdade material, mas também para questões de estatuto e (auto-)estima, especialmente porque se relacionam com o credencialismo e a meritocracia no centro da nossa actual "hierarquia de estatuto". Em Head Hand Heart, desenvolve esta ideia, ligando-a à distinção do antropólogo Ralph Linton, entre a identidade 'alcançada' e a identidade 'atribuída'. Assim, a identidade 'alcançada':
Como vimos, "sucesso educacional e profissional" está ligado a tipos particulares de trabalho e existe uma profunda ligação entre estes tipos de trabalho e as identidades de estatuto descritas acima. Porque trabalho cerebral trata do fluido e do abstracto e pode muitas vezes ser feito a partir de qualquer lugar, a maior estima que lhe é atribuído significa a marginalização das competências, "Mão" e "Coração". Esta separação tem profundas consequências sociais e políticas.
Acontece que o autor de Head Hand Heart fez avançar o seu principal argumento de forma auto-destrutiva e, desde logo, é refém do seu próprio título/taxonomia, pois obriga o leitor a pensar em termos de "trabalhos manuais" e "trabalhos com a cabeça". As suas categorias são problemáticas e a certa altura descreve-as mesmo como 'enganadoras'. O facto de não tentar em nenhum ponto do livro definir rigorosamente estas categorias, apenas aumenta o problema.
Isto não quer dizer que Goodhart esteja errado em categorizar o trabalho, mas a fórmula 'Head Hand Heart' é demasiado vaga para ser útil, e por vezes confunde simplesmente a questão. Por exemplo, a sua longa investigação sobre a relação entre QI e capacidade cognitiva em que parece insistir estranhamente que a categoria de 'pesquisa de inteligência' é agora um ramo respeitado da psicologia - é seguida por esta advertência volumosa:
Resumindo: a capacidade cognitiva é uma coisa real e mensurável, mas a máquina de classificação [ou seja, exames, testes de QI e afins] nem sempre acerta as coisas devido à dificuldade de capturar algo tão esquivo como a inteligência em testes de base limitada. Além disso, muitas das qualidades que mesmo as sociedades tecnológicas avançadas necessitam para funcionar bem e para o fazer de forma justa, não figuram de todo em definições mais restritas de inteligência - esforço, empatia, virtude, imaginação, coragem, capacidade de cuidar.
Talvez parte da resposta esteja no nosso uso da linguagem e da rotulagem.
Bem, penso que poderíamos dizer que a rotulagem faz parte da dificuldade. Como quando, por exemplo, um autor que pretende analisar a relação entre trabalho e valor descreve um leque de capacidades intelectuais como "Cabeça", de uma forma que consegue reproduzir um elemento do preconceito contra trabalhadores "manuais", nomeadamente o de que o trabalho manual não requer nenhum esforço particular ao nível do intelecto.
Tal foi o ponto de vista de Will Davies: foi a suspensão da actividade económica normal que se seguiu à emergência COVID-19 que atirou a questão do estatuto para o alívio. A COVID-19 demonstrou a ligação fundamental entre as nossas atribuições de estatuto distorcidas e o sistema económico que temos.
Como Davies observa, foi no domínio do trabalho dos cuidados que esta contradição foi mais visível e a esse respeito o novo livro de Madeline Bunting Labours of Love é impecavelmente cronometrado. Um estudo aprofundado da "economia dos cuidados", combinando entrevistas e uma análise apurada, é também um tónico bem-vindo à taxonomia de Goodhart. Se Bunting tem razão em insistir, como ela faz, que o trabalho de cuidados é caracterizado pela sua 'invisibilidade', então é especialmente importante saber do que estamos a falar quando o invocamos.
O objectivo de Bunting no livro é fazer a anatomia da crise de qualidade e disponibilidade no, cada vez maior, "sector dos cuidados". Esta crise foi destacada pela pandemia da COVID-19, que encontrou jurisdições em todo o mundo a lutar para fazer face à emergência, especialmente nos hospitais e no sector dos cuidados aos idosos.
Como Davies observa, foi no domínio do trabalho dos cuidados que esta contradição foi mais visível e a esse respeito o novo livro de Madeline Bunting Labours of Love é impecavelmente cronometrado. Um estudo aprofundado da "economia dos cuidados", combinando entrevistas e uma análise apurada, é também um tónico bem-vindo à taxonomia de Goodhart. Se Bunting tem razão em insistir, como ela faz, que o trabalho de cuidados é caracterizado pela sua 'invisibilidade', então é especialmente importante saber do que estamos a falar quando o invocamos.
O objectivo de Bunting no livro é fazer a anatomia da crise de qualidade e disponibilidade no, cada vez maior, "sector dos cuidados". Esta crise foi destacada pela pandemia da COVID-19, que encontrou jurisdições em todo o mundo a lutar para fazer face à emergência, especialmente nos hospitais e no sector dos cuidados aos idosos.
Para Bunting, também faz parte de um processo muito mais longo, no qual um profundo preconceito histórico contra o valor e a importância do trabalho dos cuidados colidiu com um sistema económico que enfatiza a disciplina fiscal e as soluções baseadas no lucro. Também não é provável que a situação melhore em breve, com o número de pessoas com mais de 85 anos a aumentar rapidamente nos países ricos (no Reino Unido espera-se que duplique até 2035) e cada vez mais famílias a confiarem os seus filhos a um sistema de cuidados infantis cronicamente subfinanciado.
Tendo colocado a motivação do lucro acima das pessoas, as democracias liberais estão a descobrir a forma difícil como o capital procura retornos privados, não sociais e que a aposta "centrista" que os dois poderiam encontrar se esgarçou para além de qualquer esperança.
O método de Bunting é ouvir e observar e só depois analisar. Viajando pelo seu Reino Unido natal, ela visita empresas de cuidados domiciliários, instituições de caridade e hospitais de ensino e entrevista os seus empregados (longamente) sobre as suas experiências. Algumas destas instituições situam-se dentro do Estado, enquanto outras existem nas lacunas que se abriram nas áreas que o Estado abandonou, mas todas estão cheias de pessoas decentes, cujos relatos sobre os desafios diários que enfrentam são muitas vezes profundamente comoventes. Além disso, demonstram os múltiplos conjuntos de competências de que necessitam para realizar o seu trabalho, o qual, embora muitas vezes rotineiro e repetitivo (tal como a entrada de dados, ou a marcação de ensaios estudantis) também necessita de conhecimentos e competências especializadas, empatia, discernimento, criatividade, sensibilidade táctil e força física. É o trabalho, em suma, que utiliza toda a gama de atributos humanos. Como diz o autor:
O método de Bunting é ouvir e observar e só depois analisar. Viajando pelo seu Reino Unido natal, ela visita empresas de cuidados domiciliários, instituições de caridade e hospitais de ensino e entrevista os seus empregados (longamente) sobre as suas experiências. Algumas destas instituições situam-se dentro do Estado, enquanto outras existem nas lacunas que se abriram nas áreas que o Estado abandonou, mas todas estão cheias de pessoas decentes, cujos relatos sobre os desafios diários que enfrentam são muitas vezes profundamente comoventes. Além disso, demonstram os múltiplos conjuntos de competências de que necessitam para realizar o seu trabalho, o qual, embora muitas vezes rotineiro e repetitivo (tal como a entrada de dados, ou a marcação de ensaios estudantis) também necessita de conhecimentos e competências especializadas, empatia, discernimento, criatividade, sensibilidade táctil e força física. É o trabalho, em suma, que utiliza toda a gama de atributos humanos. Como diz o autor:
"Aprendi como os cuidados não precisam de ser repartidos por género, e como podem ser facilmente esmagados em falsos dualismos, tais como cabeça/coração, activa/passiva ou hábil/incompetente". 'A ambigüidade é inscrita nos cuidados, à medida que se alicerça na ética, na acção prática, no pensamento e num conjunto de respostas emocionais'.A invisibilidade dos cuidados não é um fenómeno novo. Adam Smith não atribuiu nenhuma função à criação e ao trabalho doméstico dentro da economia, no que diz respeito à família e aos papéis de cuidado dentro dela, como contrapeso necessário ao frio racionalismo do mercado. O trabalho de cuidados era algo que as mulheres faziam e que se esperava que fizessem, por bondade do seu coração, enquanto os seus maridos serviam como combustível ou lubrificante para o pulsante motor da "economia" - concebido sob o capitalismo e apenas sob o capitalismo, como algo separável da vida social em sentido mais amplo. Como explica Bunting:
[O capitalismo] provocou mal-estar devido à sua brutal desumanidade e ao sofrimento que causou - trabalhadores expulsos do trabalho ou crianças a trabalhar longas horas nas fábricas. Além disso, ofereceu uma receita arrepiante para as relações humanas íntimas e teve de ser especificamente excluído do mundo privado da vida familiar. À medida que o capitalismo industrial aumentava a sua influência na sociedade, os aspectos da vida privada ficavam protegidos. As classes médias em expansão reinventaram entusiasticamente o significado da família e do lar. O casamento já não era considerado como um arranjo prático que expandia a propriedade e as ligações familiares, mas sim como uma relação em que a esposa angélica oferecia ajuda e ternura.
Claro que tais ideias persistem até aos nossos dias, mas como o capitalismo tem entrado em todas as facetas da existência humana, também entrou nos cuidados onde viu um novo e lucrativo mercado. O trabalho de cuidados é agora um sector lucrativo - de facto, o sector de mais rápido crescimento nas sociedades industrializadas, segundo Bunting. Sob as rubricas de flexibilidade e escolha, depende de um exército de trabalhadores mal pagos, a grande maioria dos quais são do sexo feminino e, como tal, encaixam na conta do trabalhador abnegado ("Coração"). Assim, o "anjo em casa" encontra o motor do capitalismo, e é-lhe dado um curso intensivo de oferta e procura.
Uma das consequências de conceber os cuidados como uma empresa lucrativa é que a sua eficiência, produtividade e competitividade precisam de ser constantemente monitorizadas - um regime administrativo com novos objectivos. Isto implica redefinir o trabalho de cuidados como uma série de tarefas discretas e mensuráveis e depois atribuir essas tarefas ao nível de competências mais baixo possível.
Uma das consequências de conceber os cuidados como uma empresa lucrativa é que a sua eficiência, produtividade e competitividade precisam de ser constantemente monitorizadas - um regime administrativo com novos objectivos. Isto implica redefinir o trabalho de cuidados como uma série de tarefas discretas e mensuráveis e depois atribuir essas tarefas ao nível de competências mais baixo possível.
Esta é uma receita para "mau serviço", claro, mas é também uma receita para a alienação, pois espera-se que tanto os prestadores de cuidados como os "clientes" cumpram critérios burocráticos infinitos. (Isto, aliás, vai para a profunda ligação entre capitalismo e 'empregos da treta', para usar a frase do falecido David Graeber). Algumas das passagens mais pungentes do livro dizem respeito aos pais de crianças doentes ou deficientes que são obrigados a navegar através de formulários estúpidos e cheias de perguntas frequentemente intrusivas.
Um dos entrevistados de Bunting - um trabalhador de caridade com deficiência e mãe de uma criança deficiente - prova ser especialmente revelador sobre este ponto, notando como esta mentalidade burocrática aproxima os pais do ponto de ruptura: 'O formulário [Subsídio de Habitação para Deficientes] é de cinquenta e tal páginas e parece uma pequena lista telefónica. A primeira vez que não consegui preenchê-lo sozinho, foi tão deprimente. Estava de luto profundo pelo diagnóstico do meu filho'.
Tais perspectivas burocráticas reflectem-se na linguagem usada para falar de cuidados e uma das coisas mais interessantes em Labours of Love é a forma como o seu autor explora a forma como as palavras se moldam e são moldadas pela mudança das condições.
De facto, o livro contém uma série de pequenos ensaios sobre como palavras como "cuidado", "empatia" e "bondade" evoluíram sob pressão ideológica - um método utilizado pelo grande crítico marxista Raymond Williams em Palavras-Chave (1976). Em particular, ela observa a forma como a linguagem utilizada no contexto dos cuidados contemporâneos é frequentemente distante ou contrária a qualquer ideia autêntica de florescimento humano. Em alguns contextos, os termos de carinho são proibidos; noutros há "auditorias de empatia"; em quase todos eles "serviços" são "entregues" aos "clientes", como se o cuidado fosse semelhante a uma pizza de take-away. Depois, claro, há a linguagem da "escolha", cuja lógica, sugere Bunting, é contrária à lógica do cuidado, que muitas vezes se prende com a dependência e mesmo com o desamparo. Assim, o neoliberalismo afoga a nossa verdadeira humanidade, desencantando a nossa vida social encarnada com a linguagem fria do cálculo.
Não há qualquer chamada à condescendência para o trabalho de cuidados. Pelo contrário, como Bunting sugere, a ética dos cuidados deve ser generalizada a todas as áreas da sociedade. Pois embora o neoliberalismo seja um credo individualista, o cuidado é fundamentalmente social e o livro de Bunting mostra-nos quão marginais são as verdades neoliberais de escolha e competição para as coisas que realmente nos importam. Nenhuma vida humana", escreveu Hannah Arendt, "nem mesmo a vida do eremita no deserto da natureza é possível, sem um mundo que testemunhe directa ou indirectamente a presença de outros seres humanos". A mutualidade não é algo por que optemos num espírito de kumbaya. Sem ela, simplesmente não existimos.
Não há qualquer chamada à condescendência para o trabalho de cuidados. Pelo contrário, como Bunting sugere, a ética dos cuidados deve ser generalizada a todas as áreas da sociedade. Pois embora o neoliberalismo seja um credo individualista, o cuidado é fundamentalmente social e o livro de Bunting mostra-nos quão marginais são as verdades neoliberais de escolha e competição para as coisas que realmente nos importam. Nenhuma vida humana", escreveu Hannah Arendt, "nem mesmo a vida do eremita no deserto da natureza é possível, sem um mundo que testemunhe directa ou indirectamente a presença de outros seres humanos". A mutualidade não é algo por que optemos num espírito de kumbaya. Sem ela, simplesmente não existimos.
O objectivo, portanto, não é redistribuir o valor que atribuímos a este ou aquele tipo de trabalho, mas mudar as nossas ideias sobre o que é o trabalho, ou seja, as nossas ideias sobre para que serve e o que significa. Pois o seu objectivo não é a produção no sentido económico restrito, mas a reprodução no sentido social: é o processo pelo qual as sociedades se recriam, material e socialmente, de um dia para o outro.
Em última análise, não se trata de lucro e crescimento; é o meio pelo qual e através do qual florescemos, como criaturas necessitadas de sustento e conforto e como seres cuja individualidade está totalmente alicerçada nas suas relações com os outros, significativos ou não. É a essência do nosso "ser espécie" como animais sociais e exclusivamente criativos.
A pandemia da COVID-19 foi um lembrete do facto de que o sistema económico que temos está, em muitos aspectos, orientado para produtos e serviços para além das nossas necessidades fundamentais, e muitas vezes para além das nossas necessidades. Penso que devemos aproveitar a oportunidade para pensar em arranjos alternativos. Talvez então os tempos se tornem realmente interessantes.
A pandemia da COVID-19 foi um lembrete do facto de que o sistema económico que temos está, em muitos aspectos, orientado para produtos e serviços para além das nossas necessidades fundamentais, e muitas vezes para além das nossas necessidades. Penso que devemos aproveitar a oportunidade para pensar em arranjos alternativos. Talvez então os tempos se tornem realmente interessantes.
(tradução minha)
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