Os 24 sacos de notas de 500 euros levantados pelo clã Ricciardi
Um mês antes da queda do BES, os elementos do clã desdobraram-se em movimentações para salvaguardar algum património financeiro. José Maria até terá contado com a ajuda do antigo presidente do Deutsche Bank, que chegou a ser suspeito de violação do segredo de justiça.
Os números não enganavam: depois de décadas de reconstrução e consolidação do poder, o impérito dos Espírito Santo estava a um passo de cair num precipício. Mas, antes da queda, o clã Ricciardi conseguiu salvar algum património financeiro, através de uma série de movimentações que foram reconstituídas pelo Ministério Público num processo que correu paralelamente ao chamado "caso BES". No final, tudo foi arquivado por falta de prova suficiente.
Vamos ao início da história: ao mesmo tempo que decidiu pela resolução do BES, que chegou ao final de julho de 2014 com prejuízos na ordem dos 3,5 mil milhões de euros, o Banco de Portugal determinou ainda uma espécie de congelamento das contas bancárias e outros produtos financeiros de "pessoas especialmente relacionadas" com o banco falido, sujeito a a sua movimentação a uma autorização do regulador.
A primeira tentativa para movimentar dinheiro ocorreu logo a 2 de julho de 2014, com Filomena Ricciardi, irmã do banqueiro José Maria Ricciardi, a ordenar a transferência de 1,2 milhões de dólares (938 mil euros à época) domiciliados no BES para uma conta aberta no Barclays do Estoril (o grupo inglês, entretanto, vendeu a sua operação em Portugal ao Bankinter). Quando a medida de resolução do Banco de Portugal foi anunciada, a 3 de agosto, Filomena ordenou a transferência do montante para uma outra conta no mesmo banco, mas de um amigo: Francisco Sousa e Mendonça. "Em alternativa, solicitou que tal valor lhe fosse entregue em numerário ou que fosse transferido para a conta de uma amiga, Maria Casal Ribeiro Bravo". Tal só não aconteceu, porque o banco, no dia seguinte, e já depois de ser publicamente conhecida a medida de resolução, alertou o Departamento Central de Investigação e Acção Penal (DCIAP), que suspendeu a operação.
Também o comandante Ricciardi, pai de Filomena e de José Maria, tentou retirar algum do seu património fora do alcance do Banco de Portugal e do Ministério Público. A 11 de julho de 2014, António Ricciardi ordenou a transferência de 500 mil euros de uma conta domiciliada no BES para uma no Barclays, da qual era titular juntamente com os filhos José Maria e António Ricciardi. Entre os dias 31 de julho e 1 de agosto, a conta foi ainda provisionada com fundos provenientes da venda e resgate de aplicações financeiras, pertencente ao líder do clã, no valor de 514 mil euros.
Com a conta a exibir um saldo de um pouco mais de um milhão de euros, no dia seguinte à resolução do BES, "António Ricciardi solicitou o levantamento em numerário", lê-se no despacho do Ministério Público, de um milhão de euros, mas apenas lhe foram disponibilizados 20 mil. No mesmo dia, 4 de agosto, António Ricciardi ordenou a transferência de 689 mil euros para uma conta no Deutsche Bank, enquanto que 311 mil euros foram mobilizado para a amortização de um financiamento no próprio Barclays.
A 5 de agosto de 2014, o DCIAP emitiu um despacho, ordenando a suspensão de todos os movimentos nas contas do Barclays, documento que ainda foi a tempo de congelar 477 mil euros fruto do resgate de aplicações financeiras. No total, o Ministério Público conseguiu congelar 1,2 milhões de dólares numa e 477 mil euros numa segunda conta ligada ao clã Ricciardi.
Além do Barclays, o Ministério Público também detetou movimentação de capitais da família Ricciardi no Deutsche Bank, que entretanto vendeu a sua operação de retalho aos espanhóis do Abanca. "No âmbito de obstar a que os seus ativos fossem objeto de medida que os privasse da sua disponibilidade", refere o Ministéri Público, o comandante Ricciardi, os filhos e a mulher de José Maria, Teresa Ricciardi, "decidiram abri contas no Deutsche Bank para as quais seriam transferidos valores mantidos" noutras instiuições.
A primeira conta foi creditada com 1,2 milhões através de duas transferências: 352 mil euros, a 22 de julho; 852 mil euros a 25 de julho de 2014. Depois de ter pedido cheques sobre essa conta, Filomena Ricciardi apresentou, a 4 de agosto, no balcão do Deucthe Bank de Cascais uma requisição de um cheque bancário no valor de 1,2 milhões de euros. No mesmo dia, o diretor do balcão pediu a uma empresa de transporte de valores a "movimentação urgente" de 1,2 milhões em numerário para o balcão de Cascais.
O diretor do balcão pediu informações internas sobre se existia alguma penhora, arresto ou bloqueio em relação a Filomena Ricciardi, sem nunca mencionar que a conta era titulada, por exemplo, pelo comandante Ricciardi, "pessoa especialmente relacionada" com o universo BES. A quantia acabaria por ser entregue no balcão de Cascais a 5 de agosto. E Filomena Ricciardi recebeu o valor do cheque em 24 sacos com 2400 notas de 500 euros.
Naquele mesmo dia, o banco recebeu um fax do DCIAP a ordenar a suspensão dos movimentos de contas bancários do comandante Ricciardi e do seu filho, José Maria. O documento, porém, já não chegou a tempo de impedir o levantamento dos sacos. O DCIAP ainda insistiu, tentando apurar a hora do levantamento. Para isso, pediu, a 11 de novembro de 2014, as imagens de videovigilância da agência de Cascais relativas ao dia 5 de agosto de 2014.
O banco começou por responder que as imagens tinham sido já destruídas. Depois, remeteu o Ministério Público para a empresa ISS Facility, alegadamente responsável pela videovigilância da agência de Cascais. Questionada, esta empresa referiu que a prestação de serviços de segurança tinha sido subcontratada à Securitas, mas só em 2015. No ano anterior, sublinhou a ISS Facility, era o próprio Deutsche Bank que realizava a recolha e tratamento da videovigilância.
Para tentar encontrar os 24 sacos com dinheiro, os procuradores do DCIAP decidiram fazer, em setembro de 2014, uma busca à casa de Filomena Ricciardi, onde encontraram um documento escrito pelo pai, no qual era referido que parte do dinheiro levantado no Deutsche, 652 mil euros, tinha sido utilizado para pagar uma dívida às Finanças. Ou seja, alguém entrou com 652 mil euros em notas numa repartição de finanças e pagou uma dívida e a autoridade Tributária emitiu o respetivo documento de liquidação do IRS.
O amigo Bernardo Meireles
José Maria Ricciardi também, segundo o despacho de arquivamento consultado pela SÁBADO, mantinha uma relação próxima com o Deutsche Bank e o seu presidente, Bernardo Meireles, que chegou a fazer parte da comissão de honra de Ricciardi quando o banqueiro se candidatou, em 2018, à presidência do Sporting.
Em julho de 2017, José Maria Ricciardi, juntamente com a mulher, Teresa Meneses Ricciardi, abriram uma conta no Deutsche Bank, no valor de 312 mil euros, transferidos do BES. Apesar de toda a situação pública e notória do Grupo Espírito Santo, nas fichas internas do banco não foi apontada qualquer tipo de ligação do casal ao grupo em pré-falência. No mês seguinte, e já após a medida de resolução, José Maria Ricciardi abriu uma segunda conta no "private banking" do Deutsche para onde pretendia transferir fundos do Credit Suisse de Londres.
Porém, com a ordem de congelamento de contas emitida pelo DCIAP, José Maria Ricciardi e Bernardo Meireles terão combinado que a disponibilização de fundos passaria por um financiamento do banco à sua mulher, através de uma conta corrente caucionada, tal como teria sido combinado com Bernardo Meireles. Isto depois de Ricciardi, segundo o Ministério Público, ter sido informado pelo próprio banco de que a conta aberta se encontrava congelada à ordem do DCIAP.
O antigo presidente do Deutsche Bank chegou a ser constituído arguido no processo por suspeitas de violação do segredo de justiça - uma vez que terá comunicado a Ricciardi a medida de congelamento de contas, antes do banqueiro transferir de Londres os fundos -, mas o MP não recolheu prova suficiente para uma acusação. No fundo, como refere o despacho, uma vez inserida no sistema, a ordem de suspensão dos movimentos era do conhecimento de praticamente todos os funcionário dos Deutsche e José Maria Ricciardi, como pessoa conhecida e influente na banca portuguesa, poderia ter obtido essa informação por outra via.
O Ministério Público equacionou ainda uma acusação ao clã Ricciardi por branqueamento de capitais, mas admitiu a ausência de um crime precedente que explicasse a origem do dinheiro movimentado.
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