December 12, 2020

Filmes - Let them all talk




Um filme de Steven Soderbergh. O filme é acerca de uma romancista reputada -Alice- com muitos prémios às costas, inclusivé um Pulitzer que  foi convidada a receber um prémio de prestígio no Reino Unido. Porque não anda de avião, a sua agente reserva-lhe uma passagem a bordo de um navio que faz rota entre os EUA e Inglaterra. Ela resolve levar consigo na viagem duas amigas da faculdade que já não vê há mais de 30 anos e um sobrinho com quem se dá muito bem e que a admira e confia nela, para fazer de seu assistente. O filme passa-se praticamente todo a bordo do navio (faz lembrar, na maneira como aquele dourado glitter dos interiores incomoda e sugere a artificialidade da maioria das pessoas, o filme, Socialismo) entre estas mulheres de 70 e tal anos, o sobrinho e a agente literária que também está no navio. 

As duas amigas de Alice não sabem exatamente por que Alice as convidou, especialmente porque já se passaram três décadas desde a última vez que se viram. O grande drama visível do filme passa-se entre Alice e Roberta, uma das amigas. Roberta acredita que a sua vida privada, que ela contou num dia entre copos a Alice, serviu de alimento para o seu livro mais famoso, o que lhe deu o Pulitzer e que o romance lhe estragou toda a sua vida pois que por causa dele perdeu a situação de riqueza que tinha e vive com dificuldade a vender lingerie numa loja - o que é sugestivo face à personagem dela: uma mulher de Dallas com um ar glamoroso mas cujo exterior agora é mais glitter que real. Ela quer um pedido de desculpas de Alice - ou alguma forma de reconhecimento do mal que fez. Quem faz o papel de Roberta é a Candice Bergen e é excelente. A cortesia com que ela fala a Alice mas sempre com um olhar gélido e um sarcasmo no tom da voz. Aliás a personagem dela é a mais interessante, porque como ela agora tem uma vida limitada, aproveita a oportunidade de estar num navio de luxo e resolve caçar um marido rico e fá-lo com nenhuma eficácia mas imensa piada. É um bocadinho patética nessa tentativa desesperada, ainda por cima porque ela é uma mulher inteligente. A personagem dela tem algo de trágico e ela representa isso muito bem. Todos os dias vai à recepção saber onde andam os homens para ir para lá. Quando descobre um tipo qualquer chama o sobrinho de Alice para que ele vá à internet investigar se o indivíduo tem cadastro, se batia na mulher, etc. O sobrinho de Alice é usado por todas elas para espiar as outras e isso tem imensa graça.

Mas enfim, o filme é sobre a vida e todos os pormenores estão pensados. Elas vão num barco em viagem, como a vida. O barco chama-se Queen Mary II - uma alusão subtil ao facto de Alice querer, ao fim de tantos anos, reatar amizade com amigas da faculdade que deixou de contactar há muitos anos e de quem se afastou - percebemos durante o filme que, that ship has sailed, como dizem os ingleses. Alice tornou-se um bocado snob e a vida delas, depois de tantos anos de ausência, já não tem cumplicidade nenhuma, o que serve para mostrar que as amizades, se não tiveram verdade nelas e se não se alimentam e restauram, morrem de fome e o que fica é indiferença ou amargura. As outras duas ainda têm essa cumplicidade.

Há mais histórias a acontecer no filme. Percebemos que a realidade tem muitas facetas e camadas e nem todas se tocam: o sobrinho de Alice, que é um rapaz de vinte e tal anos, quando diz aos amigos que vai num navio (há no filme uma referência interessante sobre se o navio é uma viagem ou um cruzeiro, o que é um modo subtil de perguntamos o que é a vida: um divertimento ou uma viagem com um propósito) com a tia e as amigas de 70 anos, fica espantado por nenhum dos amigos ter ouvido falar na tia, sendo ela um escritora conhecida e reputada com filmes feitos a partir dos livros, o que mostra como há mundos separados dentro deste mundo e alguns nunca se tocam.

Também, no navio vai um escritor muito famoso de policiais, tipo Grisham sempre cheio de fãs de volta dele, mas que percebemos que não retira satisfação, nem da fama nem da riqueza que acumulou com os livros e tudo o que ele queria era ser um escritor sério como Alice. Isto é muito interessante, quer dizer, podemos ter tudo e na realidade, não ter aquilo que para nós mais importava. Como se costuma dizer, nem tudo que luz é ouro e o que para uns é tudo, para outros, nada. Este escritor, no filme, não quer saber das fãs e passa o tempo a aproximar-se das amigas de Alice, para ver se assim consegue aproximar-se de Alice que representa o seu ideal de vida.
Também há o tema da vida dos amigos: até onde podemos aproveitar-nos da vida dos amigos, família e conhecidos para os nosso propósitos pessoais tendo em conta que as nossas acções tem consequências na vida deles.

Não vou contar o desfecho do filme. O filme está cheio de beleza, mas também de nostalgia e alguma amargura por vermos como a passagem dos anos, as más experiências e o modo como se entendeu a vida, podem estragar o que era belo e cheio de promessas como tantas vezes acontece. No entanto, também há o outro lado: o da má experiência de vida levar as pessoas a procurar o que é real e a ver a vida com outros olhos e muita autenticidade, como é o caso do sobrinho de Alice.

As três 'amigas' são interpretadas por, Meryl Streep, Candice Bergen e Dianne Wiest. As três excelentes, mas para mim, a Candice Bergen destaca-se. O filme tem muitas camadas para descobrir. Hei-de vê-lo outra vez para reparar nos pormenores dos pormenores.


2 comments:

  1. Vou procurar no HBO para o ver....

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  2. eu depois fui procurar e parece que o filme foi feito praticamente em 8 dias, durante uma travessia de NY a Southampton com pessoas que iam de viagem e que não perceberam, na maioria, que estava a ser feito um filme a bordo - passam o tempo a jogar no casino, a dançar e a fazer compras e nem sabem o que passa

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