November 24, 2020

Vícios

 


Levei uns anos a trabalhar na minha cabeça a ideia de deixar de fumar, porque sabia que antes de deixar, efectivamente, de fumar, tinha de ter a coragem de matar em mim a identidade de fumadora. É que fumar estava embutido na minha identidade: há dezenas de anos que fazia todas as actividades que me importavam e me definiam, a fumar: ler, estar à conversa com amigos, estudar, beber um café, beber um copo, sentar-me a olhar o pôr do sol e até o amor, não dispensava o cigarro. Portanto, sabia que o mais difícil era desistir de mim como pessoa fumadora e que, uma vez isso conseguido, tinha força de vontade para deixar de fumar. O que aconteceu.

Apegamo-nos às partes mais doentias de nós porque fazem parte de nós desde sempre e acabam por definir-nos, na nossa mente. Uma pessoa pode viciar-se na sua dor: sabe Deus a quantidade de poetas e escritores que o fizeram por pensarem que era daí que vinha a sua inspiração. Podemos achar que é a sobrevivência a um passado de dificuldades e de dor que nos deram resistência e determinação para a vida e essas características tornam-se inseparáveis em nós. É um vício emocional: é a nossa dor, única e distinta da dos outros e largá-la -dizê-la até a alguém- parece que nos torna vulgares.

Só que isso é um engano. Ultrapassar a dor é aumentar a resistência e a determinação (ser capaz de se reconstruir identitariamente sem a dor é uma enorme vitória) e é ganhar perspectiva, subir degraus no círculo de libertação. 


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