Essencialismo é uma visão do ser humano enquanto facto, categoria pré-determinada com as suas potencialidades circunscritas e, portanto, uma liberdade condicionada; existencialismo é uma visão do humano como um modo do ser, ser; dentro do modo dos seres serem, está o modo humano. Em termos filogenéticos o modo humano é uma linha com muitas estações -marcadas pelo tempo e pelo espaço- e dentro de cada estação há os modos dos passageiros serem, se serem: somos cada um de nós, nas pegadas com que escolhem marcar a nossa permanência temporária no mundo. Por exemplo, há o modo da beatriz ser humana. Este é o modo ontogenético.
Uma metáfora que vem logo à cabeça é a de Paul Valéry, em 'O Homem e a Concha'. Neste texto das Variété, Valéry reflecte e espanta-se sobre uma concha espiralada.
A concha é matéria inorgânica, é calcário. No entanto, é matéria construída por um ser vivo. O molusco, à medida que se desenvolve, vai segregando uma parte do seu manto que se calcifica. O que nos espanta a todos é que esta calcificação tem uma forma perfeita. A forma de espiral perfeita, às vezes com bicos, outras com veios, mais as cores extraordinárias e desenhos das conchas, são uma construção de um ser vivo que a habita. Portanto, o molusco teu um auto-telos e, como nós humanos, que nos construímos sacrificando partes de nós, da nossa carne e sangue físicos e emocionais, usa a concha tanto para se proteger como para se mostrar, para se projectar, como nós, para existirmos enquanto modos de ser humanos.
No entanto, percebemos que entre todas as conchas, há um padrão na sua construção. Por exemplo, as conchas todas, salvo raras excepções que são compradas a peso de ouro pelos colecionadores, são destras -os seres humanos são destros, na sua maioria. Também notamos um padrão na construção humana -reconhecemo-nos uns aos outros como humanos- mas o modo do ser que somos, desenvolver-se em humano tem uma liberdade que a concha não tem. A nossa liberdade, como dizia Sarte, é também a nossa condenação, pois não nos permite, neste caso, a perfeição que a concha, quer dizer, o molusco, consegue no seu trabalho só por estar vivo. Como Valéry faz notar, por muito extraordinário que um artista seja, jamais conseguiria construir uma concha mais bela e perfeita que a natural, justamente porque o artista é forçado à liberdade de escolher, os materiais, as cores, a composição... etc.
A vida humana não tem a necessidade do molusco, é construída em liberdade e nada está garantido ou dado à partida, nenhuma forma de espiral nos espera. Somos o que percebemos de nós, dos outros e do mundo e o que fazemos com o que percebemos, tudo isso misturado com o medo e o desejo. Todos nós gostaríamos que no final da nossa existência tivéssemos construído uma forma espiralada, perfeita, bela na sua simplicidade elegante, só que isso pertence aos seres sem o drama humano, aos deuses da infância. Nós estamos na estação intermédia que já não tem a necessidade fechada da concha mas também não tem a liberdade sem perda.
Isso quer dizer que estamos sempre em busca da perfeição? É isso?
ReplyDeleteEntão e aquelas pessoas que se contentam com qualquer coisa? Também as há e, às vezes, até parecem felizes....estou só a pensar....
Quer dizer que a perfeição não nos pertence, não está no nosso modo de ser humano, na nossa estação, por assim dizer. Talvez na estação seguinte quando houver outros modos de ser já não-humanos. Não tem que ver com o que se quer mas com o que se faz de si e da sua vida. Faz-se sempre qualquer coisa humana. Nada mais. Mas o que é interessante é um búzio, um animal supostamente tão abaixo da nossa estação, fazer uma concha perfeita, coisa que nos escapa.
ReplyDeleteEntão quer dizer que o "normal" é termos uma 8vida,digamos, trivial?
ReplyDeleteNão, não é isso. O normal é termos uma vida 'messy' - é a palavra correcta. Más experiências, obstáculos, traumas, muitas tentativas, muitos erros, alguns grandes, muitos enganos, muito sofrimento, muitos desejos frustrados, muitos medos, muita loucura escondida, etc - tudo isso leva a grandes bagunçadas. O modo de ser humano é amalucado e ninguém sai bem na fotografia - alguns parecem porque escondem tudo, não assumem as suas loucuras, têm existências de desespero silencioso para aparecerem de um certo modo. A mim parece-me que há grande liberdade e... satisfação...em sermos capazes de ser honestos com a vida, o que não é fácil...
ReplyDeletePois, não é fácil mas eu tento sempre limpar os esqueletos do armário! Se calhar é a única coisa que limpo bem 🤣🤣
ReplyDeletePois, com a idade melhora... uma pessoa entretanto aprendeu a processar experiências, a aceitar falhas, etc. Quando somos mais novos é muito difícil. Bem, há pessoas que chegam até ao fim da vida sem pensar. E não acredito, como se diz muitas vezes, que sejam mais felizes por isso.
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