Exatamente.
Pois era isso, precisamente, que eu queria determinar: as coisas que, sem serem contrárias entre si, não admitem o seu contrário. Será o caso do três quem, sem ser o contrário do par, de forma alguma o aceita, pois ele lhe opõe sempre o seu contrário, como faz o dois com o ímpar, o fogo com o frio e infinitos mais exemplos. Dize-me agora se não concluirias que não é apenas o contrário que não recebe o seu contrário, porém tudo o que leva a Ideia do contrário da coisa que o recebe, não admite nesta o contrário daquilo que ele leva. Recapitulemos tudo o que dissemos até aqui, pois não há mal em ouvir a mesma coisa várias vezes: O número cinco não admite a Ideia de par, nem o dez, o dobro daquele, a de Ímpar. Por sua vez, o duplo é o contrário de outra coisa, porém não admite a Ideia do ímpar, como também não a admitem, o meio e outras frações do mesmo tipo, nem a Ideia de todo, de terço e de tudo o mais da mesma natureza, se é que me acompanhas e estás de acordo comigo.
[as coisas têm uma característica essencial que participa da Ideia que as causou e essa caracteríscia essencial não admite contrário - o 5, apesar de não ser contrário ao 4, será sempre ímpar e nunca se transformará em número par, pois estas Ideias são opostas]
Não somente estou de inteiro acordo, disse, como te acompanho.
LIV – Então, repete tudo isso do começo, continuou, porém não me responda com minhas próprias palavras, mas de outra forma, tomando-me como modelo. O que digo é que, além da resposta certa que eu apresentei no começo, encontrou-se outra de não menor confiança no que ficou dito depois. De facto, se me perguntasses: Que precisa haver no corpo para que ele fique quente, já não te daria a resposta segura que a ignorância antes me impunha, dizendo que é o calor, mas outra muito mais aprimorada, com base em nossa exposição anterior: o fogo. Como também se me perguntasses o que precisa haver no corpo, para que ele adoeça, não responderia que é a doença, porém alguma febre. E no caso de perguntares o que precisa haver num número para ser ímpar, não me referira a imparidade, mas à unidade, e assim sucessivamente. Agora vê se apanhaste bem meu pensamento.
À maravilha, respondeu.
Então, continuou, que precisa haver no corpo para que ele viva?
Alma, respondeu.
E sempre terá de ser assim?
Por que não? Foi sua resposta.
Logo, tudo o de que a alma se apodera, a isso ela dá vida?
É o que ela faz, de fato, respondeu.
E porventura haverá alguma coisa contrária à vida? Ou não há?
Sem dúvida, respondeu.
Que é?
A morte.
De onde vem, que a alma nunca poderá aceitar o contrário daquilo que ela sempre traz consigo; é o que se conclui de tudo o que dissemos até agora.
Conclusão certíssima, respondeu Cebete.
LV – E então? O que não admite a Ideia do par, que nome lhe demos agora mesmo?
Ímpar, respondeu.
E o que não recebe o justo, ou não recebe o harmônico?
Desarmônico, disse, ou injusto.
Muito bem. E o que não recebe a morte, como denominaremos?
Imortal, foi a sua resposta.
Ora, a alma não recebe a morte.
Não.
A alma é, pois, imortal?
- É Imortal.
[se a natureza, a essência da alma é ser vida, jamais poderá transformar-se no seu contrário (morte) da mesma maneira que nunca o 3 será número par.]
Muito bem. Podemos afirmar, por conseguinte, que isso ficou demonstrado? Ou como te parece?
Ficou demonstrado à saciedade, Sócrates.
E agora, Cebete, continuou: se o ímpar fosse indestrutível por força das coisas, não teria também de ser indestrutível o três?
Como não?
E se o não-quente também fosse por necessidade indestrutível, sempre que alguém aproximasse da neve o fogo, não se retiraria a neve intacta e sem derreter-se? Não pereceria, é claro, e por mais que ficasse exposta ao calor, não o receberia.
É muito certo, respondeu.
Como também, segundo penso, se o não-frio fosse indestrutível por natureza, e alguém aproximasse do fogo o frio, jamais o fogo se apagaria ou viria a fenecer, porém afastar-se-ia incólume.
Necessariamente, respondeu.
E não será também preciso falarmos nesses mesmo termos no que entende com o mortal? Se o imortal também for imperecível, a alma, sempre que a morte se aproximar dela, não poderá morrer; pois de acordo com o que dissemos antes, ela não admitirá a morte nem virá a morrer, da mesma forma que o três, conforme vimos, nunca poderá ser par, e com ele o ímpar, nem o fogo ficará frio nem o calor que há no fogo. Porém o que impede – poderia alguém objetar – que o ímpar, muito embora não fique par à aproximação do par, e sobre isso, já nos declaramos de acordo, venha, de facto, a perecer, por transformar-se em par? A quem tal objetasse, não poderíamos responder que não perece, pois o ímpar não é indestrutível. Porém se isso houvesse sido aceito antes por nós, fora fácil retorquir que à aproximação do par, o ímpar e o três se retiram. Da mesma maneira responderíamos com respeito ao calor, ao fogo e a tudo o mais. Ou não?
[uma coisa não pode ser e não-ser ao mesmo tempo e se o que é imortal, por definição, não morre, então tudo aqui que o tocar, também não o será]
Sem dúvida.
Sendo assim, agora, com relação ao imortal, uma vez admitido por nós dois que também é imperecível, a alma, terá de ser por força imperecível. Caso contrário, precisaríamos lançar mão de outro argumento.
[sendo a alma vida e princípio de vida -ela dá a vida ao corpo quando entra nele- não pode ser não-vida, que é a morte: logo não pode morrer]
Não por causa disso, retorquiu; dificilmente poderia haver quem não admitisse a destruição, se o imortal, com ser eterno, fosse passível de acabar. [seria uma contradição nos termos]
LVI – Quanto à divindade, falou Sócrates, ao que suponho, e à Ideia da vida e a tudo o mais que possa haver de imortal, todos estão de acordo em que nunca podem parecer.
Sim, por Zeus, todos os homens, respondeu, e, com maioria de razões, os próprios deuses.
Uma vez que o imortal é imperecível, a alma, sendo imortal, não terá de ser, da mesma forma, imperecível?
Forçosamente.
Logo, como parece, ao aproximar-se dos homens a morte, o que neles for mortal [o corpo] terá de perecer, enquanto a sua porção imortal [a alma] cede o lugar à morte e continua sã e incorruptível.
Claro.
É certíssimo, por conseguinte, Cebete, continuou, ser a alma imortal e imperecível, e existirem realmente nossas almas no Hades.
Quanto a mim, Sócrates, falou Cebete, nada tenho a objetar contra teus argumentos, nem o que alegar para não admiti-los. Porém no caso de Símias ou qualquer outro querer dizer alguma coisa, fará bem em não se conservar calado, pois não sei que melhor oportunidade do que esta poderá encontrar quem se disponha a falar ou a ouvir seja o que for a respeito destas questões.
Eu também, falou Símias, não vejo razão para não aceitar o que foi dito. Dada, porém, a grandeza da matéria e por não confiar muito na fraqueza humana, sou forçado a declarar que ainda alimento algumas dúvidas com respeito ao que foi explanado.
Não é só isso, Símias, falou Sócrates, como muito bem te exprimiste, até mesmo as nossas proposições iniciais, por dignas de confiança que pareçam, precisam ser consideradas mais a fundo, e, uma vez suficientemente analisadas, estou certo de que acompanhareis a argumentação, na medida da capacidade de compreensão do homem, até que, tudo esclarecido, nada mais tenhais a investigar.
[o conhecimento nunca se pode dar por acabado e é sempre necessário investigar as questões mais a fundo até esclarecer todos os aspectos]
É muito certo o que dizes, respondeu.
LVII – Porém devemos senhores, considerar também o seguinte: se a alma for imortal, exigirá cuidados de nossa parte não apenas nesta porção do tempo que denominamos vida, senão a totalidade do tempo [portanto o terreno mais a eternidade do Hades], parecendo que se expõe a um grande perigo quem não atender esse aspecto da questão. Pois se a morte fosse o fim de tudo, que imensa vantagem não seria para os desonestos, com a morte livrarem-se do corpo e da ruindade muito própria juntamente com a alma? Agora, porém, que se nos revelou imortal, não resta à alma outra possibilidade, se não for tornar-se, quanto possível, melhor e mais sensata. Ao chegar ao Hades, nada mais leva consigo a não ser a instrução e a educação, justamente, ao que se diz, o que mais favorece ou prejudica o morto desde o início de sua viagem para lá.
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