November 24, 2020

Leituras pela manhã - o trauma e a reconstrução como um re-arranjo das partes e do sentido do todo





O trauma desfaz o mundo do 'eu' - poderão as histórias refazê-lo?

Anna Gotlib

Os seres humanos são criaturas que contam histórias: nós inventamos narrativas para construir o nosso mundo. Seja nas paredes da caverna de Lascaux ou no registro dourado armazenado na Voyager, queremos compartilhar-nos a nós mesmos e o que é importante para nós, por meio de palavras, de ações e até mesmo do silêncio. 
As narrativas que se auto-criam criam os mapas da totalidade de nossa realidade física e experiências - ou, como os filósofos às vezes dizem, dos mundos da vida que habitamos. 
E assim como as narrativas podem criar mundos, também podem destruí-los. O trauma, nas suas várias formas, tem feito parte dessas narrativas desde tempos imemoriais, muitas vezes por quebrar as topografias de nossos mundos de vida. 

Quebrando o nosso meio mais fundamental e garantido de auto-compreensão, ele substitui as nossas narrativas familiares por algo terrível, algo misterioso, às vezes algo indizível. 
O que é o trauma? Em vez de apenas medo, culpa ou memórias indesejadas, o trauma é uma força totalizadora que desfaz os nossos mundos, levando a uma espécie de perda do mundo. Ele desenha linhas nítidas marcadas "antes" e "depois": o "antes" demarca o mundo pré-lapso, o eu que conhecíamos; o 'depois' é a devastação de um mundo da vida quebrado que permanece.

Por sermos contadores de histórias naturais, recorremos às narrativas para tentar dar sentido ao trauma. As nossas histórias podem variar tão amplamente quanto a própria experiência humana. 
Às vezes, embora o trauma destrua o nosso sentido de quem somos, ele também nos atira para uma maior clareza sobre versões alternativas, talvez melhores, de nós mesmos. 

E assim, embora a Epopéia de Gilgamesh (c1800 aC) ofereça um vislumbre da dor do trauma, ela também explora os seus efeitos transformadores. Através de sua tristeza pela perda de seu amado amigo Enkidu, o arrogante Gilgamesh, tocado pela tragédia pessoal, torna-se mais conectado ao mortal e ao temporário - na verdade, torna-se mais humano.

Alternativamente, no 'depois', podemos encontrar-nos nos espaços liminares difíceis que o trauma cria para nós. Sigmund Freud argumentou que podemos ficar traumatizados por um sentido contraditório do que ele chamou de "estranho": a coisa quase reconhecível, esquecida ou reprimida que nos assusta. 
Podemos lembrar-nos do horror em pedaços e partes, em flashes vívidos e em opaca ausência de memória. 
Para isso, também, precisamos de narrativas pelas quais navegar nessas fronteiras de memória. Toni Morrison, no seu romance Beloved (1987), escreve narrativas nascidas do que ela chama de 'lembrança' dos sobreviventes da escravidão que enfrentam o estranho ao relembrar e remontar as suas histórias, as suas famílias, as suas comunidades, eles próprios. O trauma alimenta as narrativas, e as próprias narrativas tornam-se os loci do trauma, os campos de batalha onde o sofrimento e a memória se encontram. As narrativas ficcionais oferecem uma espécie de ajuste de contas com nossos traumas coletivos. 

Mas compreender e responder ao trauma também exige histórias pessoais que nos levem a experiências singulares de perda do mundo da vida. O que precisamos, então, é uma maneira mais direta de vislumbrar como é o trauma e como podemos prosseguir em seu rastro. 
Essas narrativas pessoais podem surgir contra o pano de fundo de tragédias históricas mundiais. Por exemplo, o escritor italiano e sobrevivente do Holocausto Primo Levi descreve a sua chegada a Auschwitz: Levado pela sede, vi um pedaço de gelo fino fora da janela, ao alcance da mão. Abri a janela e quebrei o gelo, mas imediatamente um guarda grande e pesado que rondava do lado de fora com brutalidade arrebatou-o de mim. 'Por quê?',perguntei-lhe no meu alemão pobre. "aqui não há porquês", respondeu, empurrando-me para dentro.

As palavras de Levi transportam-nos para o seu mundo, para o seu trauma - como parece, como soa. Vemos um homem desumanizado não apenas pela brutalidade do próprio campo, mas pelas atitudes de seus algozes que tornam possível tal traumatização. 
O que a narrativa de Levi deixa claro é que como (ou se) nos traumatizamos uns aos outros depende do que Ludwig Wittgenstein chama da nossa 'atitude em relação a uma alma': o papel que as nossas ações e palavras desempenham no reconhecimento de outra pessoa como humana. Os captores de Levi não viam tal humanidade nele. 
É essa desumanização que nos revela como o trauma pode ser algo que escolhemos fazer uns com os outros. Mas também sugere como pode ser resistido: nas circunstâncias mais difíceis, como uma guerra, as nossas atitudes em relação a outra alma são importantes. O trauma deve ser compreendido, expresso e confrontado narrativamente? Para muitos, de forma alguma. 

Em vez disso, pode ser vista como uma doença, padronizada pelo manual psiquiátrico DSM - III (1980), levando-nos diretamente ao consultório do psiquiatra para medicamentos, para o psicólogo para terapia ou então para a livraria local para literatura de auto-ajuda. Essa medicalização do trauma o posiciona como uma doença, como um estranho interior que deve ser tratado como se trataria um vírus: identificar o culpado, encontrar a ferramenta adequada para o combate e destruir o inimigo.

No entanto, como as complexidades do trauma frequentemente escapam às soluções puramente médicas, isso é, na melhor das hipóteses, incompleto. Voltemos então ao trauma como uma experiência existencialmente ameaçadora. 
Uma série de doenças graves na unidade de terapia intensiva deixa a pessoa com um medo paralisante da possibilidade de voltar lá durante a pandemia. Uma vítima de violência sofre de transtorno de stresse pós-traumático, o seu mundo, para sempre, mais inseguro. No "depois" traumático, não estamos simplesmente enfrentando emoções negativas que podem ser eliminadas com medicamentos. Não temos os meios de um reparo mais permanente - o tipo que não apenas atenua a dor, mas restabelece mundos de vida significativos. Estamos emocionalmente, narrativa e psicologicamente à deriva, tendo 'sobrevivido' a nós mesmos, como a filósofa e sobrevivente do trauma Susan Brison observa em Aftermath: Violence and the Remaking of a Self (2001), sem um caminho de volta. O que resta, então, para refazer?

Quando tudo o mais falhar, podemos refazer a própria história. Como a maioria de nós não pode fazer muito sobre as condições em que nos encontramos, podemos começar por reparar as histórias sobre quem somos. 
 A maneira como procedemos depende, em parte, do que queremos que essas narrativas façam por nós - afinal, nem todas as histórias são confiáveis, ou boas, ou restauradoras. Algumas narrativas podem insistir na desesperança impenetrável após o sofrimento. Outras podem aconselhar o esquecimento do trauma em favor de lacunas epistémicas. 

Mas, como descobriram os ex-amantes do filme Eternal Sunshine of the Spotless Mind (2004), nenhuma quantidade de esquecimento deliberado apaga completamente as nossas lembranças mais profundas e indesejadas. O que também falha é um tipo de pensamento mágico. Aqueles que abraçam as tendências amplamente americanas para narrativas triunfantes e centradas na felicidade oferecem histórias do que a ativista política Barbara Ehrenreich chama de 'otimismo imprudente' em seu livro Bright-sided (2009), ou Smile or Die como é intitulado na Grã-Bretanha. Como observa Ehrenreich: Não podemos levitar-nos a nós mesmos para essa condição abençoada só por desejá-lo. Precisamos preparar-nos para uma luta contra obstáculos terríveis, tanto de nossa própria autoria quanto os impostos pelo mundo natural.

Nenhuma dessas opções, parece-me, nos aproxima mais da reparação do mundo. Então o que fazer? Surpreendentemente, uma espécie de optimismo - mas não a variedade imprudente. 
Viktor Frankl, o neurologista austríaco, psiquiatra e sobrevivente do Holocausto, argumentou em, Man's Search for Meaning (1946) que no meio do desespero, tragédia e sofrimento ainda podemos encontrar - na verdade, criar - significado abraçando o que chamado de 'optimismo trágico'. Esse estranho tipo de optimismo permite-nos refazer a nós mesmos e aos nossos mundos, apesar do que Frankl chama de "tríade trágica" de dor, culpa e morte. 

É para o "optimismo trágico" de Frankl que podemos voltar-nos no meio ao trauma. Um optimismo trágico é encontrado na história da enfermeira da UTI de Brooklyn que opta por ficar ao de um paciente moribundo do COVID-19, testemunhando o seu sofrimento. Totalmente ciente do trauma da morte isolada, ela oferece uma contra-narrativa ao assumir uma atitude em relação à alma dele que restaura o seu mundo de vida, e o dela, mesmo que um pouco. Ela testemunha em silêncio e em narrativas faladas - “Você não está sozinho.” Suas ações transformam o trauma em algo mais significativo: o isolamento do sofrimento humano e da morte não é mais ininteligível, mas compartilhado através de uma profunda experiência de compaixão. E embora as suas ações possam não salvar vidas no sentido mais básico, elas salvam o mundo do paciente, pelo tempo que resta. 

Portanto, o trágico optimismo exige que abandonemos nossas tendências de busca pela felicidade. Enfrentamos o difícil processo de restauração do mundo por meio da restauração do significado - por meio do nosso trabalho, dos nossos relacionamentos e do envolvimento com o próprio sofrimento. 

O que isso requer não é uma negação da existência do trauma ou dos seus poderes destrutivos, mas a decisão deliberada de agir de forma a afirmar nossa humanidade compartilhada, sustentando os mundos da vida uns dos outros.

O trauma não é um vírus que se deve eliminar com remédios, nem uma história que se esquece, nem uma profunda tristeza a ser substituída por um optimismo temerário. O que pode ser é um catalisador para histórias diferentes - histórias melhores - sobre quem somos, o que valorizamos e como podemos viver no 'depois'. 
E essas histórias não buscam a felicidade - elas são criadoras e refeitas de significado. São narrativas de optimismo trágico que não são vítimas de amnésias confortáveis ​​ou mitos da invulnerabilidade humana. Eles não alimentam ilusões sobre a indestrutibilidade dos nossos mundos. Talvez se nos envolvermos com os nossos traumas com menos relutância e nos abrirmos para as possibilidades de reconstrução narrativa do mundo, possamos integrar algumas das nossas piores experiências nas histórias em constante evolução sobre quem somos. Por mais desconfortável que seja, podemos coexistir e até florescer com o seu brilho. Porque o trauma pode, e irá, desfazer novamente os nossos mundos.

(tradução minha)

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