November 23, 2020

Algures entre o Bem e o Mal, o relacional



relativismo ou perspectivismo? Uma nova ideia de comunidade


A negação dos valores absolutos leva necessariamente ao relativismo, mas render-se a essa conclusão significa abandonar-se àquele niilismo "passivo" de que falava Nietzsche. Depois da metafísica, por assim dizer, ainda é possível fundar uma ordem moral? O perspectivismo moral nietzschiano permite-nos reconsiderar a questão a partir da relação que existe entre as diferentes instâncias individuais dentro de uma comunidade.

Qualquer tentativa de dar uma resposta exaustiva à controversa questão da objetividade dos valores parece muito ambiciosa e, se sairmos de uma perspectiva metafísico-teológica, até mesmo infundada. No entanto, não podemos desistir diante de um relativismo que, ingenuamente, afirma a intercambialidade e a equivalência de todos os valores, reduzindo a reflexão moral a uma mera escolha ocasional de qual o sistema de valores que parece mais adequado para atender às nossas necessidades individuais, ou, mais amplamente, os da comunidade. 

 Segundo a tradição, o relativismo enquanto posição filosófica nasceu na Grécia com os sofistas, em particular com Protágoras, que num famoso fragmento afirma:


"O homem é a medida de todas as coisas, das que são, enquanto são, das que não são, visto que não são."

A afirmação de Protágoras diz-nos duas coisas importantes: não há verdades absolutas e, consequentemente, não há moralidade absoluta, precisamente porque a palavra não pode fundar nenhum sistema de valores para além da dúvida. 
A unidade de medida da verdade é o homem, que enquanto tal, não é infalível; segundo essa visão, a retórica assume uma posição capital, precisamente porque é apenas a esfera do discurso que pode fazer com que determinada ideia prevaleça sobre todas as outras. A verdade e os valores que expressa não são absolutos, mas relativos à "força" do discurso que os expressa. 
A posição protagoriana, entretanto, não deve ser entendida como um relativismo absoluto, na verdade ele acrescenta que de vez em quando é a utilidade e não a palavra que é o critério de discriminação entre um valor, ou um sistema de valores, e todos os outros: o que parece mais útil para a sobrevivência da comunidade torna-se verdadeiro, ou seja, torna-se o valor ético de referência.


S. Rosa, "Democrito e Protagora" (1663-4)


Voltando à questão inicial, para não cair no niilismo ou no indiferentismo moral, é útil olhar para o perspectivismo nietzschiano, que embora negue a existência de valores absolutos, se foca na dinâmica relacional e comunitária.

Numa nota famosa, Nietzsche escreve que "não há factos, apenas interpretações": o universo do discurso é a verdadeira realidade e os fenómenos só o são na medida em que são interpretados a partir de uma ou mais "perspectivas". 

O perspectivismo nietzschiano é ao mesmo tempo uma teoria gnoseológica e uma teoria moral: o mundo é interpretado de diferentes pontos de vista e isso tem não apenas implicações cognitivas, mas também morais. Nesse ponto, surge a pergunta: existe uma "perspectiva" que tem mais valor do que as outras? Teoricamente as "perspectivas" possíveis são infinitas, porém o perspectivismo baseia-se num modelo relacional, no qual as perspectivas individuais adquirem valor e significado apenas se colocadas em relação com todas as outras. Mesmo que seja inegável a existência de uma componente individualista em Nietzsche, devemos ter em mente a crítica que ele faz à noção de "Sujeito": o que chamamos indevidamente de "Sujeito" ou "Eu" é na verdade uma construção mental; os indivíduos são um conjunto de impulsos e estímulos, conscientes e inconscientes e o que chamamos de "Sujeito" é o seu centro gravitacional: vários assuntos que convergem no mesmo "centro de força".

Mas o que é útil para os fins deste artigo é investigar as implicações práticas dessa teoria. Em The Will to Power, Nietzsche afirma que “não existem fenómenos morais, mas interpretações morais dos fenómenos”. 
Não são dados valores absolutos, mas cada valor é relativo e seu conteúdo é especificado exclusivamente na relação entre diferentes perspectivas. 

A rejeição do fundamento metafísico da moralidade tem um resultado positivo: abre-se espaço para uma liberdade "positiva" do homem, que consiste em assumir responsabilidades e assumir a responsabilidade pela criação de novos valores. E dado o inextricável entrelaçamento de interpretações em que estamos imersos, não caberá apenas ao indivíduo criar novos valores, embora Nietzsche os atribua apenas a algumas personalidades, mas à comunidade como um todo. 

O super-homem nietzschiano, apesar de ser um indivíduo situado além do bem e do mal, está necessariamente emaranhado nesse entrelaçamento de interpretação: cada perspectiva influencia e é influenciada pelas outras. Não se trata de concordar ou não com essa teoria nietzschiana, mas é interessante que o próprio Nietzsche reconheça essa dimensão relacional como essencial.

Em última análise, o relativismo moral não é um destino inelutável, mas uma escolha. A consciência de que nenhum valor moral pode ser absoluto e definitivo não significa negar a possibilidade de uma ordem de valores. A nossa responsabilidade individual e nossos esforços devem ser direcionados para um diálogo aberto e contínuo entre diferentes perspectivas, a fim de reconsiderar as comunidades humanas não mais como monólitos, mas como um lugar de encontro entre diferentes instâncias e visões. É apenas a síntese deste coral de vozes que pode estabelecer, sempre provisoriamente, o nosso horizonte moral.

(tradução minha)

(esta perspectiva lembra muito a dialética das hipóteses... bem, é o 'eterno retorno do mesmo' de que falava Nietzsche)

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