October 26, 2020

Livros gratuitos - Platão, Fédon XVII (continuação)

 


XLVIII – De seguida, continuou, já cansado de considerar as coisas, foi preciso acautelar-me para não acontecer comigo o que se dá com as pessoas que observam e contemplam o Sol quando há eclipse: por vezes perdem a vista, se não olham apenas para a imagem dele na água ou nalgum meio semelhante. Pensei nessa possibilidade e receei ficar com alma inteiramente cega, se fixasse os olhos nas coisas e procurasse alcançá-las por meio de um dos sentidos. [outra vez a ideia de que os sentidos são inadequados enquanto instrumento e linguagem do que é inteligível] Pareceu-me aconselhável acolher-me ao pensamento, para nele contemplar a verdadeira natureza das coisas. [porque a Verdade é racional] É muito provável que a minha comparação não seja exacta, pois não é, quanto a mim, ponto assente que o estudo dos seres, através das suas manifestações externas se revele menos do que através das ideias, um estudo à base das imagens... [ele sabe que não é certo que o pensamento, por ser mais fiável que os sentidos, seja capaz de alcançar Verdades, mas sendo mais seguro, é nele que nos devemos apoiar] De qualquer modo, meu caminho foi esse. Em cada caso particular, parto sempre do princípio que se me afigura mais forte, considerando verdadeiro o que com ele concorda, no que se trate de causas ou do que for e, como falso, o que não afina com ele. [mesmo que o pensamento não seja verdadeiro, é coerente ao contrário do conhecimento relativo que sabemos ser contraditório, logo falso, portanto, no mínimo, eliminamos as falsidades] Vou expor-te com maior clareza minha maneira de pensar, pois quer parecer-me que não a apreendeste muito bem.

Não muito, por Zeus, respondeu Cebete.

XLIX – No entanto, prosseguiu, o que eu digo não é novo, mas o que sempre afirmei, tanto noutras ocasiões como em nossa argumentação recente. Vou tentar mostrar-te a natureza da causa por mim estudada, voltando a tratar daquilo mesmo de que tenho falado toda a vida, para, de saída, admitir que existe o Belo em si, e o Bem, e o Grande, e tudo o mais da mesma espécie. Se me aceitares esse ponto e concordares que existem, tenho esperança de mostrar-te a causa e provar a imortalidade da alma.

Admite que já concedi tudo, falou Cebete, para não atrasares ainda mais tua exposição.

Então, considera o que se segue, continuou, para ver se estás de acordo comigo. O que me parece é que se existe algo belo além do Belo em si, só poderá ser belo por participar do Belo em si. O mesmo afirmo de tudo o mais. Admites essa espécie de causa?

Admito, respondeu.

Então, já não compreendo, continuou, as outras causas, de pura erudição, nem consigo explicá-las. E se, para justificar a beleza de alguma coisa, alguém me falar de sua cor brilhante, ou da forma, ou do que quer que seja, deixo tudo o mais de lado, que só contribui para atrapalhar-me, [porque o brilho ou o colorido, noutra circunstância ou objecto poderia fazê-los feios e não belos, de modo que nunca esses elementos poderiam ser a causa de algo ser belo] e me atenho única e simplesmente, talvez mesmo com uma boa dose de ingenuidade, ao meu ponto de vista, a saber, que nada mais a deixa bela senão tão só a presença ou comunicação daquela Beleza em si, qualquer que seja o meio ou caminho de se lhe acrescentar. [portanto, as coisas materiais são belas por terem algo da Ideia de Beleza] De tudo o mais não faço grande cabedal; o que digo é que é pela Beleza em si que as coisas belas são belas. Na minha opinião, essa é a maneira mais certa de responder, tanto a mim mesmo como aos outros. Firmando-me nessa posição, tenho certeza de não vir a cair e de que tanto eu como qualquer pessoa em idênticas circunstâncias poderá responder com segurança que é pela Beleza que as coisas belas são belas. Não te parece? 

Sem dúvida.

Como é por meio da Grandeza que o grande é grande e o maior é maior, e pelo da Pequenez que o pequeno é pequeno.

Certo.

Logo, também não concordarias com quem dissesse que um homem é maior ou menor do que outro uma cabeça, porém persistirias na defesa de tua proposição, de que na tua maneira de pensar tudo o que é grande só pode ser grande por causa da Grandeza, nada mais, sendo esta, a Grandeza, que deixa grandes as coisas, como o pequeno só será pequeno por causa da Pequenez, vindo a ser isto mesmo, a Pequenez, que deixa pequeno o pequeno, de medo, quero crer, no caso de afirmares que um homem é maior ou menor do que o outro uma cabeça, que pudesse alguém objectar-te, primeiro, que é pela mesma coisa que o maior é maior e o menor é menor; depois, que, sendo pequena a cabeça, é por meio dela que o maior é maior, verdadeiro disparate: vir a ser alguém grande por causa do que é pequeno. Não receias isso? [se fosse a mesma cabeça que fizesse um ser pequeno e outro ser grande, quer ele dizer, o resultado seria absurdo e contraditório como sempre acontece quando consideramos as causas pelo ponto de vista do material sensível]

Sem dúvida, respondeu rindo Cebete.

Como também recearias dizer, continuou, que dez é em dois mais do que oito, sendo essa a razão de o exceder e por causa da quantidade.

Perfeitamente, respondeu.

E então? No caso de uma unidade ser acrescentada a outra, não terás medo de dizer que essa adição foi a causa de formar-se o dois, ou, na hipótese de ser a unidade cortada ao meio, que foi a divisão? E não protestarias em alta voz que não sabes como uma coisa possa transformar-se noutra, a não ser pela participação da essência própria da natureza que ela própria participa [a Ideia, neste caso a de Dualidade] e que, no caso concreto da geração do dois, não saberás informar outra causa se não for a participação da Dualidade? Dessa Dualidade é que terá de participar o que tiver de ficar dois, como participará da Unidade, tudo o que vier a ser um. Quanto às divisões e acrescentamentos e demais subtilezas do mesmo gênero, mandarás todas elas passear, deixando o cuidado da resposta a quem for mais sábio do que tu. 

Quanto a ti, de medo, como se diz, da própria sombra e de tua inexperiência, e firmado naquele
pressuposto seguríssimo, 
[portanto, o que a investigação filosófica tem de fazer é examinar a solidez dos pressupostos] responderias daquele jeito. E no caso de investir o adversário contra tua própria tese, não lhe darias atenção nem responderias a ele sem primeiro verificares se as consequências de seu postulado são dissonantes ou harmônicas [Investigar se os pressupostos levam a consequências absurdas como aconteceu no caso do argumento da lira e da música] E na hipótese de fundamentar tua proposição, fá-lo-ias da mesma forma, com admitir um novo princípio, que se te afigurasse mais valioso, até conseguires resultado satisfatório. [num segundo momento, poderia, então, investigar-se os próprios pressupostos] Ao contrário dos disputadores, [está a referir-se, outra vez, aos sofistas, que embaralham as pessoas argumentando indiferentemente princípios e consequências como se tudo fosse igual] não confundireis com suas consequências o princípio em discussão, caso quisesses alcançar alguma realidade sobre os seres. Com esta, ao que parece, é que nenhum deles se preocupa no mínimo. Com todo o seu saber, o que fazem é baralhar tudo, muitos anchos de si mesmos. Tu, porém, se te incluis entre os filósofos, farás o que te disse. [Platão expôs aqui o método dialético: que vai de hipótese em hipótese até aos princípios para averiguar da sua coerência e depois regressa ao mundo para ver se as consequências desses princípios são razoáveis ou absurdas]

Falaste a pura verdade, disseram a um só tempo, Símias e Cebete.

Equécrates – Por Zeus, Fedão, nem lhe seria possível expressar-se de outro modo, pois me parece de clareza meridiana semelhante explanação, até mesmo para quem for dotado de parco entendimento.

Fedão – Perfeitamente, Equécrates; todos os circunstantes foram desse mesmo parecer.

Equécrates – Que é também o de todos nós que não participamos do colóquio e te ouvimos neste momento.

L – E depois disso, o que disseram?

(continua)

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