Liguei a TV às 4 da manhã (tenho de tomar o pequeno-almoço agora porque depois são muitas horas de jejum) e estava a dar este filme. Ia a meio. Tem piada porque ainda há uns dias estive a falar dele com um amigo. O filme é muito interessante. Como diz logo no início, não é baseado em acontecimentos reais, é sobre acontecimentos reais. O filme acompanha o planeamento e roubo de livros raros da biblioteca da Transylvania University, entre eles Os Pássaros da America de Audubon que 4 estudantes universitários do Kentucky levaram a cabo, muito estúpida e desajeitadamente, em 2003.
O que torna o filme diferente é o facto de ser comentado, paralelamente ao trabalho de recriação dos actores, pelos próprios indivíduos que fizeram o roubo. Também a bibliotecária e alguns pais aparecem a comentar os acontecimentos. O roubo foi tão mal planeado e executado, bem como a tentativa posterior de vender os livros que conseguiram trazer (o maior prémio, Os Pássaros, deixaram-no caído no chão) que passadas duas ou três semanas estavam todos presos e os livros de volta à biblioteca.
O filme não glamoriza os rapazes, pelo contrário, e deixa no ar a pergunta, ''porquê?". O que é que os levou a estragar a vida desta maneira estúpida? Quer dizer, estamos a falar de 4 rapazes de classe média, com uma vida confortável e privilegiada que cresceram em ruas de grandes vivendas de subúrbios abastados, com um futuro promissor. Um deles, o que tem a ideia de roubar o livro de Audubon, é um estudante de Belas Artes que tem ambição de ser designer gráfico e pintor, mas acha que lhe falta uma experiência marcante, na sua vida rotineira, para se tornar um grande pintor. Outro é o guarda-redes estrela da equipa de futebol da universidade, mas está farto do desporto e quer uma vida diferente.
Todos eles cresceram a ver filmes de gangsters e de assaltos, tipo, Ocean's Elevan e a fantasiar em fazer algo diferente, genial. Um dos rapazes reais que entrou no assalto, diz a certa altura, no fim do filme, que eles são de uma geração a quem os pais deram tudo e fizeram que acreditassem serem especiais; que desde miúdos, pegavam numa coisa qualquer que fizessem como se fosse um talento extraordinário e diziam-lhes que eram especiais e que podiam ser tudo o que quisessem na vida, quando na realidade, diz o rapaz, tudo era banal e nós éramos pessoas banais: rapazes brancos com uma vida privilegiada, sem nunca ter passado dificuldades e sem conhecer o mundo. Os pais, que também são entrevistados, dizem que não percebem, porque lhe deram uma boa educação, uma educação para o sucesso.
Acabaram todos na cadeia a cumprir pena de sete anos e sairam dali para vidas medíocres e limitadas.
Este filme devia ser um wake up call para todos os governantes que passam pelo ME de há uns anos para cá, com um discurso de convencer os pais de que os filhos são todos extraordinários, cheios de criatividade e curiosidade inatas e que só não se não se tornam todos génios porque os professores são maus. Os pais acreditam mesmo nisto e passam essa ideia aos filhos.
Cada vez mais há pais que vão à escola com este discurso de os filhos serem muito bons porque os professores lhes foram dizendo sempre que podem tudo e porque sempre tiveram as notas máximas. O que é verdade, mas isso não se deve a serem excepcionais mas à pressão que o ME faz para que se passem todos e aos acertos que se fazem nas outras notas como consequência.
Todos os milhares de alunos que vão entrar para a faculdade este ano com notas de 18, 19 e 20 devido à fantochada que foram os exames, estão convencidos que são excepcionais e isso não os ajuda, nem a eles, nem a nós.
A minha médica, que dá aulas numa faculdade de Medicina, dizia-me há tempos que os alunos entram para o curso convencidos que são excepcionais só porque vieram com grandes notras e que é difícil fazê-los ver que ainda não sabem nada. Pois, bem vinda ao clube... cada vez mais imensos alunos chegam ao 10º ano abaixo dos mínimos aceitáveis mas com classificação de 5, logo, pensando que são excepcionais...
Os excepcionalmente bons e os excepcionalmente maus são raríssimos. A maioria das pessoas não é excepcional, é mediana. Com muito trabalho e estudo progridem para bons alunos ou até muito bons e nós sabemos como pô-los a progredir, mas se já vêm convencidos que são excepcionais, que as suas opiniões desinformadas valem tanto como as dos que têm conhecimentos (consequência da evangelização do ME) é difícil convencê-los que têm de estudar e trabalhar bastante para chegarem às notas a que estão habituados.
E o que vamos dizer aos pais...? Olhe, o seu filho/a é normal; os alunos com características excepcionais são raros e diferentes (mesmo esses não são excepcionais a tudo: podem ser excepcionais no desporto, na matemática, nas línguas, na filosofia, no desenho, etc. -) e quando temos um aluno desses, damos logo por isso. Claro que não.
Todo o sistema está desenhado para a mentira e para a auto-indulgência, para o divertimento e prazer e não para o esforço e trabalho. É assim que muitos chegam aos governos convencidos que são grandes génios renascentistas e não percebem que os valorizaram por terem talentos limitados e/ou grandes cunhas.
Vi o filme na semana passada, salvo erro, e concordo plenamente com tudo o que escreveu. Aquilo que um dos rapazes/homens disse sobre o desejo de fazer algo marcante e tal deixou-me bastante tempo a olhar para o ecrã e a pensar na sua estrutura de pensamento e visão da vida.
ReplyDeleteEu tenho uma teoria há muito tempo, provavelmente absolutamente idiota, mas... Sou filho de dois pais analfabetos, que nunca puseram os pés numa escola porque foram gerados para trabalhar. A minha mãe aprendeu a ler sozinha e, depois, ensinou o meu pai o conhecimento dos números e a assinar o próprio nome, mas nunca soube ler. Naturalmente, éramos pobres. No final dos anos letivos, os ténis tinham buracos nas solas, de tão usados e gastos, mas não lhes pedia uns novos, porque sabia das dificuldades. Durante anos, estudei à luz de um candeeiro a petróleo, numa casa gelada entre novembro e abril, aquecido por uma manta velha às costas e uma velha braseira aos pés. A faculdade surgiu um pouco por acaso, pois filhos de gente humilde não frequentavam tal grau de ensino. Mas por vezes sucedem milagres. Durante o curso, muitos livros ficaram por comprar, porque o dinheiro não era elástico, e fazia 60 ou mais km à boleia por dia para poupar o dinheiro dos autocarros. Só depois da sua morte, em conversas com amigos seus, compreendi o orgulho do meu pai na licenciatura do filho.
Para que serve este panegírico? Os meus pais trabalharam imenso para me poder pagar o curso e sempre tive consciência de que o caminho para chegar a algo era duro e implicava sacrifícios. Muitos dos miúdos de hoje não têm noção do que é uma dificuldade, um obstáculo, a necessidade de ser resiliente (gosto da palavra!), de que vamos cair muitas vezes e só nos resta levantar e tentar de novo. Daí chegam aos vintes, aos trintas, aos quarentas mesmo e não são adultos, não têm maturidade, não sabem lidar com o mau que a vida, inevitavelmente, lhes colocará no caminho. Fico sempre estupefacto com o número de alunos acometidos de depressões e maleitas do género.
Peço desculpa pelo testamento.
Isso é uma grande história de vida!
ReplyDeleteFicou-me do filme a ideia de que aqueles rapazes, acima de tudo, não têm profundidade, são superficiais.
A maioria dos alunos não valoriza o trabalho, ninguém os ensinou a valorizar o trabalho. Também não têm perseverança porque ninguém lhes oferece resistência.