August 13, 2020

da filosofia

 

A filosofia é linguagem e para se entender o pensamento de um filósofo, é necessário saber o significado dos conceitos que usa como ferramentas para analisar a realidade. Tome-se uma palavra como substância: embora ela tenha uma raíz que a identifica como o que subjaz, os filósofos usaram-na em sentidos e interpretações diferentes e a palavra tem uma longa história. Isto não é nenhuma ideia extraordinária. Também nas ciências exactas cada termo é definido com rigor. Basta olhar a tabela periódica com os pesos atómicos exactos dos elementos. Mas a linguagem da filosofia não tem o rigor matemático da Física, por exemplo, de modo que antes de começarmos a falar temos que clarificar muito bem os conceitos. 

O que é que aquele filósofo quis dizer com aquele conceito e com que propósito? Por muito abstracta e hermética que pareça a linguagem de uma filosofia, ela refere-se sempre a nós, humanos e aos nossos problemas e os conceitos que usa são essa ponte que permite passar do pensamento que pensa às coisas pensadas. Os termos têm um contexto porque o filósofo é um indivíduo com um pé no seu tempo, embora tenho outro a transcendê-lo. 

Há filósofos que são relativamente fáceis de ler, comparativamente a outros. Kant, por exemplo, é muito sistemático, explica com clareza os conceitos, dá exemplos, contextualiza. Mas não Hegel.

Lembro-me de estudar Hegel, na faculdade. Tirei uma grande nota nessa cadeira. Fizemos um teste sobre Hegel e eu falei muito bem daquilo tudo sobre o espírito e o absoluto que se desdobra em alteridade e como é necessária a negatividade e sem ela a essência é vazia e isso tudo, mas sem perceber o que raio ele queria dizer com isso... ele estava a falar de quê propriamente? De Deus? E o que era aquilo de se dividir em alteridade? 

Eu falava dele como se o pensamento dele fosse um jogo lógico, onde eu sabia sem me enganar a ordem de encaixe dos conceitos, da mesma maneira que vejo muitos alunos saberem resolver um problema de trigonometria, mas quando lhes pergunto o que é a matemática e o que é a trigonometria, não sabem dizer, não fazem ideia. Resolvem os problemas como se fosse um jogo de que conhecem as regras e nada mais. 

Era o que eu fazia a falar de Hegel, percebendo muito bem e com alguma frustração que o significado do jogo me escapava completamente. Lembro-me de falar com o professor da cadeira e de dizer-lhe que nem sempre percebia do que Hegel estava a falar. E ele explicou-me os conceitos com as mesmas palavras e frases que já tinha usado e que não clarificam nada e eu fiquei na mesma e resolvi pôr Hegel no purgatório, onde já estavam mais alguns filósofos que eu achava que só com muitas leituras e experiência é que seria capaz de percebê-los porque me faltavam as ferramentas conceptuais e experiência de vida para ser capaz de os assimilar e integrar na minha arquitectura conceptual. No que não estava errada.

A questão é que, quando percebemos ou alguém nos esclarece o sentido que Hegel dá a cada termo: fenomenologia, essência, substância, negatividade, etc., depois o pensamento dele aparece com clareza. 

Isto é válido com todos os filósofos: uma filosofia é uma espécie de universo paralelo alternativo onde tudo é parecido com o nosso, sendo simultaneamente diferente e estranho - é uma visão muito pessoal que alguém construiu acerca da realidade e do seu sentido. Para entrar dentro dela é necessário um insight ou um ajuste do olhar como acontece quando queremos ver estereogramas e temos que fazer um esforço para focar o olhar de um modo diferente do habitual. Assim que se consegue, depois anda-se lá dentro à vontade a explorar e ver tudo e tudo faz sentido, se é que me faço entender.

Este aspecto da filosofia ter uma linguagem que não é necessariamente acessível é algo que tenho sempre presente nas aulas porque não quero que os alunos tenham uma experiência hegeliana das aulas de filosofia, onde sabem falar usando os conceitos e sabem desfiar os argumentos a favor e contra o utilitarismo mas sem perceber ao certo do que falamos e, por isso, sem aproveitar nada da riqueza da filosofia enquanto ferramenta valiosa de transformação interior e formação de uma visão que permita vários enfoques sobre a realidade.


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