Sociedade: em Portugal mais de 2 milhões de miúdos vivem no limiar da fome.
Escolas: podemos ajudar... os miúdos podem tomar o pequeno-almoço e o almoço na escola.
Sociedade: os miúdos não têm acesso a médico de família ou dentista nem dinheiro para medicina privada.
Escolas: podemos ajudar... trazemos médicos ou enfermeiros à escola para exames aos olhos, aos dentes. Muitos professores usam contactos pessoais para marcar consultas médicas gratuitas a alunos, conseguir acompanhamento psicológico, etc. Muitos professores fazem colectas entre si e gastam dinheiro do seu salário para comprar óculos para alunos, por exemplo ou cadeiras de rodas.
Sociedade: 20% das famílias portugueses vive em dificuldades.
Escolas: podemos ajudar... fazemos recolha de roupas, sapatos e damos para alunos carenciados. Muitos professores gastam dinheiro do seu salário para comprar bens de primeira necessidade para alunos, por exemplo.
Sociedade: muitos alunos são vítimas de maus tratos, abusos e negligência, em casa.
Escolas: podemos ajudar... fazemos das escolas sítios seguros e dos professores pessoas-refúgio. Teremos psicólogos mas não em número suficiente... professores sem treino em questões de trauma acompanham esses alunos e orientam-nos semanalmente. Os professores passarão mais tempo com esses miúdos que com os seus próprios filhos. Ficam afectados por não poderem fazer mais pelos miúdos ao seu cuidado.
Sociedade: muitos miúdos têm pais que trabalham longe e saem depois da hora de fecho das escolas.
Escolas: podemos ajudar... arranjamos programas e professores para ajudarem os alunos com os trabalhos de casa, mantemos as escolas abertas com funcionários que os acompanhem até os pais chegarem. Professores e funcionários chegarão a casa tarde para resolver esse problema das famílias.
Sociedade: muitas famílias não têm dinheiro para viajar, nem formação para levar os miúdos a uma exposição, sequer.
Escolas: podemos ajudar... organizamos visitas de estudo com professores que façam de guias pedagógicos. Se os alunos não têm dinheiro para pagar a visita muitos professores pagam-na do seu bolso.
Sociedade: uma percentagem grande de alunos não têm pais capazes de os ajudar nos trabalhos da escola.
Escolas: podemos ajudar... arranjaremos professores que ficam na escola depois das aulas para ajudar os alunos. Esses professores perderam as suas noites e fins de semana a trabalhar para preparar aulas, classificar testes e trabalhos, responder a emails, etc., sem tempo para as suas famílias.
Sociedade: muitos alunos não têm nenhuma actividade física.
Escolas: podemos ajudar... a educação física e o desporto são obrigatórios e os professores acompanham os alunos com problemas físicos desenhando programas especiais para eles.
Sociedade: todos os anos há milhares casos de bullying, violência nas escolas, por parte de alunos e pais.
Escolas: podemos ajudar... detectamos os alunos que fazem bullying, protegemos as vítimas, disciplinamos os ofensores, fornecemos-lhes acompanhamento pedagógico por professores sem treino para isso, se não houver psicólogos.
Sociedade: 20% das famílias vive no limiar da sustentabilidade - muitos negligenciam os filhos, não acompanham os seus estudos, nem se interessam pelos seus problemas escolares.
Escolas: podemos ajudar... contactamos os pais e mesmo sem assistentes sociais arranjamos maneira de falar com eles. Muitos só têm a escolaridade básica e falta de educação e ofendem os professores que são quem ajuda os filhos. Perseguem professores e usam-nos para descarregar as suas frustrações da vida. Alguns chegam a bater nos professores. Têm expectativas absurdas e novelescas para os filhos, baseadas nos discursos governamentais. Mas não se preocupem que mesmo assim continuamos a apostar nesses alunos e a acompanhá-los mais aos pais. Por vezes os pais vêm à escola falar com os professores sobre os seus problemas pessoais porque não têm ninguém com quem desabafar e que os ajude: mãe que vivem sozinhas com os filhos e um avô idoso doente e não têm dinheiro para pô-lo numa instituição, nem para pagar os tratamentos - vêm à escola só para desabafar e chorar com um adulto. Por vezes vivem com um marido alcoólico e abusador e têm medo pelos filhos vêm à escola só para desabafar e chorar com um adulto. Por vezes os pais têm 3 empregos para poderem sustentar os filhos e vêm à escola para desabafar e chorar com um adulto. Não se preocupem, pois os professores directores de turma ouvem todas essas pessoas e ajudam sempre que podem.
Sociedade: muitos jovens que acabam a escola não têm dinheiro para continuar os estudos. As bolsas de estudo são em número reduzidíssimo e com tantos obstáculos para ninguém as conseguir que quase ninguém as consegue.
Escolas: podemos ajudar... muitos alunos continuam a contactar os professores depois de sair da escola. Entraram para a universidade mas não têm dinheiro para o passe que são 120 euros por mês ou para livros. O professor ajuda-os. Eles prometem pagar de volta. Geralmente fazem-no. Ou não conseguiram entrar para a universidade nem arranjar trabalho. Deixam-nos mensagens às duas da manhã: só penso em suicidar-me, não tenho quem me ajude, lembrei-me de si. Entraram para a universidade mas não têm nenhum ajuda lá dentro. Nós ajudamos. Arranjamos livros, aconselhamos acerca do que fazer, de como lidar com este ou aquele professor, de como estudar.
Sociedade: estamos no meio de um pandemia difícil de controlar. Vamos fechar as escolas e os miúdos ficam sem aulas.
Escolas: podemos ajudar... prescindimos das férias da Páscoa, se for preciso gastamos dinheiro a comprar um PC melhor, com câmara, fazemos formações rápidas, instalamos aplicações, internet de banda larga, fazemos reuniões online, montamos um sistema de comunicação com alunos e pais online. Não se preocupem que quando o período começar, estaremos no nosso posto a trabalhar e a ajudar os alunos e os pais, se for preciso.
Sociedade: os números da pandemia voltaram a aumentar. Porque escolhemos, durante décadas, ignorar as desigualdades, a pobreza, a escola pública, a discriminação e a segurança no emprego que são a raíz de todos os problemas acima mencionados, agora precisamos que as escolas abram para os alunos terem refeições, ajuda de aconselhamento e psicologia, acesso a computadores, a livros, sapatos, etc. e tudo isto com acompanhamento e supervisão. Parece que o COVID afecta pouco as crianças e os jovens, logo, vamos a abrir!
Professores: podemos ajudar, claro... sentimos falta dos miúdos nas aulas. Mas e a respeito dos 50% de professores que têm mais de 50 anos? E os que são imunodeprimidos ou vivem com alguém que o é? E as grávidas? Vamos ter condições de segurança? Turmas pequenas de modo a que os alunos estejam a um metro e meio cada? Horários desencontrados para que a sala dos alunos e dos professores não esteja apinhada de gente sem possibilidade de distanciamento físico? Máscaras para todos e desinfectante? Funcionários para limpar e desinfectar os espaços?
Sociedade: Uau! Que é isso? Deixem-se de queixas. Sempre estiveram dispostos a sacrificar o tempo de família, o salário, a vossa saúde mental... então agora que precisamos de vocês não estão dispostos a dar a vossa saúde e a vida, até, se for preciso, para que a sociedade possa continuar a ignorar as suas responsabilidades, atirar tudo para cima de vocês e ir dormir descansada? Ainda por cima uns 80% de vocês são mulheres e é o que nós, sociedade, esperamos que as mulheres façam: que cuidem e se sacrifiquem pelos outros.
Durante décadas as escolas e os professores foram o penso-rápido das falhas da sociedade, porque nos preocupamos com os miúdos. Sabemos que são eles quem geralmente mais sofre com as falhas da sociedade. As escolas e os professores não são responsáveis, nem capazes de reparar o Portugal pobre e endividado, com governos minados de corrupção e tráfico de influências que desvia o dinheiro de melhorar as escolas para projectos que comprometem o desenvolvimento da sociedade, a melhoria das condições de vida, a diminuição das desigualdades, o fim da pobreza.
Abrir as escolas em pânico tem menos que ver com a educação que com as outras falhas da sociedade que a escola supre, em alguma medida, nomeadamente ter alguém que supervisione os miúdos para os pais poderem voltar ao trabalho e participar na economia.
Ninguém melhor que os professores sabe as dificuldades das famílias: acho que ficou claro, mais acima, que somos nós que ouvimos, acompanhamos e servimos muitas vezes de amortecedor dos seus problemas monetários, identitários, existenciais. Exceptuando as famílias, ninguém, a não ser os professores se preocupa verdadeiramente com os alunos, não em abstracto, como números num futuro económico mas como pessoas com uma existência real, agora, porque os conhecemos de perto, acompanhamos as suas vidas.
No entanto, não somos carneiros enviados para o matadouro pela razão que a sociedade sabe que não se interessa o suficiente pelos filhos do país para atacar com seriedade e meios de investimento os problemas da desigualdade, da pobreza, da discriminação, da precariedade do emprego e as outras raízes dos problemas e espera que os professores, se sacrifiquem e morram no seu posto a pôr pensos-rápidos nas hemorragias sociais.
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