July 04, 2020
Filmes - ‘Never Rarely Sometimes Always’
Uma pequena jóia, este filme. Sobre uma adolescente muito introvertida de 17 anos de uma pequena cidade conservadora e provinciana da Pensilvânia, nos EUA, que descobre estar grávida. Sem apoio da mãe, sobrecarregada de tarefas às ordens de um padrasto que não se interessa, sem apoio do namorado que é o típico idiota que vai para cama com ela e depois lhe chama slut, sem apoio da clínica onde vai fazer o teste da gravidez, que lhe mostra um daqueles vídeos contra o aborto e sem dinheiro, tenta acabar sozinha com a gravidez. Não consegue.
A rapariga estuda e trabalha em part-time com uma prima num supermercado onde atura os homens a meterem-se com ela e o supervisor da loja sem nenhuma consideração por elas. Essa prima é quem a ajuda. Percebe o que se passa, tira algum dinheiro do supermercado para a camioneta até NY e vai com ela porque no estado da Pensilvânia só se pode abortar em caso de incesto ou de violação. Mais tarde, em NY, mas perguntas que a enfermeira lhe faz e dão nome ao filme, ficamos a saber que já foi forçada a fazer sexo, inclusivé sexo anal, desde muito nova, que o namorado lhe bate, obriga-a a fazer sexo sem protecção, etc., frequentemente contra a vontade dela. Portanto, de facto, foi muitas vezes violada...
As raparigas chegam a NY e ela percebe que não está de 10 semanas como lhe tinham dito lá na terra dela, mas de 18 semanas. Pensando que seria um procedimento para uma tarde descobre que tem de ir a outra clínica no dia a seguir onde façam abortos no segundo trimestre de gravidez. Uma daquelas clínicas que tem sempre adultos à porta a insultar as miúdas que lá vão, como se não tivessem já problemas que cheguem. Os únicos adultos que a ajudam e a tratam de acordo com as necessidades, problemas e idade dela são os do centro de saúde e da clínica onde acaba por fazer o aborto.
Entretanto, como têm que ficar lá duas noites porque o procedimento de interrupção de gravidez precisa de tempo para a dilatação cervical e, não tendo dinheiro para hotéis, passam as duas noites na rua, nas estações, no metro, com homens a assediar, ela com dificuldade em andar dos procedimentos de preparação que fez mais a prima, a arrastar uma mala. Há uma grande cumplicidade entre as duas raparigas, de quem sabe que nestes problemas ninguém ajuda a não ser o pessoal médico das clínicas e só podem contar umas com as outras.
O filme mostra a seriedade do problema - vê-se que ela e a prima estão muito conscientes da gravidade do acto, mas sem melodramas -é uma coisa que tem que fazer e faz, sem lamúrias, dramas ou queixumes; mostra como os homens têm, como coisa natural, um comportamento invasivo do território das raparigas e das mulheres e depois deixam-nas sozinhas com os problemas e ainda as julgam e perseguem.
A rapariga faz o procedimento e voltam para casa. Pouco falam do que se passou e vê-se que volta para uma vida de silêncio e incompreensão a não ser de outras raparigas-mulheres que sabem o que é passar por estas coisas e não ter ninguém para ajudar e não poder dizer a ninguém para não ser crucificada.
Há uma série de anos, numa altura em que se fez um referendo sobre o aborto aqui no país, organizámos uma discussão sobre o assunto numa turma a pedido deles, miúdos de 16 e 17 anos. No fim da aula fiquei a falar com um grupo de raparigas que era amigas. Algumas delas disseram-me que já tinham abortado. Uma delas disse que era sexualmente activa desde muito nova. Muito, mesmo.
De vez em quando tenho alunas grávidas. Às vezes os pais ajudam, outras vezes expulsam-nas de casa. Deve haver muitas a fazer abortos para escaparem a... muita coisa, muita coisa, que não têm idade para ter que aguentar.
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