June 26, 2020

Sobre padrões de qualidade no ensino



Um dos livros que vieram cá parar abaixo, no dia em que caí do escadote foi o livro da 3ª classe, antiga. Depois descobri que tenho o da 2ª e da 1ª. Só não tenho o da 4ª classe ou se tenho está noutro sítio qualquer.
Pus-me a ver o livro da 3ª classe. Tem 200 e tal páginas, com algumas ilustrações, sobretudo nas páginas de aritmética, mas poucas, é quase tudo texto.






 Fui dar com este poema de Pedro Dinis. É um poema sobre as vozes dos animais. Um miúdo na 3ª classe tem mais ou menos 7 ou 8 anos. Hoje-em-dia seria impensável dar um texto destes a uma criança dessa idade. A complexidade da linguagem e a quantidade de informação compactada  em cada quadra não seriam acessíveis a alunos desse ano de escolaridade. Aliás a página que explica as fracções, que nestes tempos que correm só se aprendem no 5º ou 6º ano (penso), nem um aluno do 7º ou 8º ano a entenderia sozinho.

É um facto que hoje-em-dia os alunos sabem muito mais do que nós sabíamos na idade deles: sabem mais da vida e das ciências. Qualquer site de astronomia tem informações acessíveis que há 50 anos só na faculdade se aprendiam. Entram na internet e vêem pessoas, acontecimentos, lugares do mundo, usos e costumes que os nossos antepassados nem numa vida inteira vislumbravam.

Em contrapartida, como são ensinados com conteúdos sempre e cada vez mais infantilizados, com poucos conceitos e muitas imagens simplistas, têm pouca concentração, pouca imaginação (as imagens, que são redutoras, são-lhes todas dadas, depois de processadas e manipuladas), uma grande pobreza de vocabulário e, como consequência, um pensamento superficial e sem instrumentos conceptuais para escavar ou construir.

Nós tínhamos poucas imagens processadas e não tínhamos acesso à internet. Para sabermos tínhamos que ler, ler e ler. Ler é um processo biológico (move-se os olhos, faz-se recurso à memória declarativa, estabelece-se ligação entre áreas corticais diferentes - de abstracção e de emoção), psicológico (as palavras são evocativas e apelam à memória episódica, à experiência de vida), filosófico (a leitura, não meramente técnica, apela à reflexão, à introspecção) e estético (a leitura é um grande motor da imaginação e do gosto). Portanto, ler é um grande, senão o maior motor do desenvolvimento formativo do ser humano na sua totalidade.

Quando me perguntam se os alunos estão cada vez pior, tenho que responder que não. Em termos de interesse, empenho, responsabilidade, não vejo diferenças -  há de tudo, como sempre houve. São em geral mais responsáveis no que respeita às questões ambientais, ao respeito por orientações sexuais diferentes, pelos outros animais. Dantes tinham outras causas, agora têm estas.
Onde noto uma grande diferença de ano para ano, é na linguagem - na capacidade de ler um texto e conhecer 10% das palavras, na capacidade de compreender uma frase com mais de duas linhas e de construção complexa, na capacidade de ler o texto por detrás do texto e na capacidade de se concentrarem por largos períodos de tempo.

Este fenómeno tão catastrófico do desenvolvimento é reversível, mas não temos políticos educados o suficiente para compreender as consequências desta decadência progressiva. Se calhar alguns até acham que isso é bom em termos elitistas (da mesma maneira que os países do Norte acham bem ter aqui uns atrasados no Sul a fornecer mão-de-obra barata) mas a mim parece-me o contrário, por razões que hei-de dizer em outro post.

(um aparte - Platão não gostava de imagens. No âmbito da sua Teoria das Ideias, as imagens eram degradações, cópias, aparências, obstáculos no acesso à verdade.)

texto sobre fracções do livro da 3ª classe




No comments:

Post a Comment