June 04, 2020

As ruas como arames farpados



Conheço esta paisagem, já a vi na Rússia. Quando vamos a São Petersburgo não vemos Leninegrado. Estamos sempre a ver S. Petersburgo, com as suas cores alegres, a imponência dos palácios e da catedral com as cúpulas em ouro, os canais e as pontes. Opulência, graça e elegância. O Hermitage e aquele excesso de Belo da arte que encerra pôs-me um bocadinho aérea. Durante dias procurei Leninegrado e não via nada de nada que evocasse a cidade, sendo que tinha consciência, todo o tempo, de estar na cidade do poema de Brecht acerca dos soldados nazis que ofereciam presentes às namoradas, que mandavam das cidades conquistadas e de Leninegrado só chegavam caixões.
Só quando saí da cidade, para Sul, em direção ao Peterhof, vi Leninegrado, e foi isto que vi. Edifícios gigantescos, com uma casa de banho para cada 100 apartamentos, dum castanho, não escuro, mas sujo. Enfiados no meio de ruas que parecem arame farpado, com estátuas de heróis soviéticos de bronze escuro todos iguais a Lenine - aquele boné, a mão estendida ligeiramente para cima. Uma comoção opressiva porque imediatamente imaginamos a vida das pessoas naquele prédios medonhos e insanos de cubículos sem privacidade nem espaço, como celas de prisão. A guia contou que a Câmara estava a oferecer casas a jovens mas nem mesmo oferecidas as queriam. Ali perto, um bocadinho antes, um monumento aos heróis da Segunda Guerra, bastante bonito, sóbrio e sem propaganda. Depois saímos da cidade e passa completamente esta impressão opressiva e voltam as cores alegres, a elegância e a opulência.
Este pintor pintou a minha impressão ao passar naquele bairro. Exactamente isto. As ruas como arame a farpar as pessoas.

Nikolaj Tretiakov (Russian 1925 -2014). Cheliabinsk in 1960-70s

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