April 17, 2020
De bestas a bestiais enquanto um covid esfrega o olho
É simpático chamarem heróis, mas bom, bom, era pagarem-nos o que nos devem e deixarem de nos agredir todos os dias, verbal e fisicamente.
Os heróis de hoje eram as bestas de ontem
A pandemia que estamos a viver em todo o mundo veio com um novo olhar sobre os profissionais que, de uma forma ou de outra, tentam salvar a sociedade de todos os males que ela trouxe consigo.
Os profissionais ligados à saúde são hoje presenteados com o título de “heróis de primeira linha”. Aqueles que, contra a natureza humana, não fogem do campo de batalha, mesmo que estejam a perder a batalha. Permanecem, voltam um dia atrás do outro, arriscando as próprias vidas e com isso arriscando, muitas vezes, as vidas dos seus em casa. Trabalham sem meios adequados, inventam e reinventam soluções, testam formas de combate à doença, dão o seu melhor para que a sociedade não perca a guerra.
A sociedade vê neles um exemplo de perseverança e esperança no futuro. Os hospitais são presenteados com material de apoio, por anónimos e conhecidos. Os profissionais de saúde vêem-se apoiados por toda a comunidade que os rodeia com os maiores e mais pequenos gestos de agradecimento, às vezes um simples e sincero “obrigado” tem todo o valor do mundo, dando-lhes o alento que necessitam para continuar em frente.
Mas não foi há muito tempo: os que hoje os chamam de “heróis”, apelidavam-nos de “bestas” por reivindicarem melhores condições de vida como o reconhecimento das suas especializações ao nível de ordenados, a exigência de um estatuto de carreira de desgaste rápido, um estatuto de carreira no caso dos enfermeiros e o descongelamento de carreiras. Os auxiliares de acção médica, esses, arriscam as suas vidas todos os dias por um ordenado mínimo, mas não desmobilizam, continuam a ajudar a salvar vidas contra todas as probabilidades, mesmo contra tudo o que a razoabilidade humana lhes exija. Trabalham sem subsídios de risco, trabalham com o medo nos corações, mas pelos olhos emanam esperança.
Os professores, num mês, inventaram e reinventaram a escola. Com espírito de missão, arregaçaram as mangas e traçaram novos caminhos na educação. O ensino à distância é hoje uma realidade em progressão. Sem orientações dignas dessa palavra, deram resposta aos seus alunos num primeiro momento. Com orientações vagas delinearam estratégias, organizaram-se, foram à procura de soluções e encontraram-nas, construíram-nas e chegam aos seus alunos.
O ministro da Educação chama-os de “heróis”. “Cada professor é um verdadeiro herói”, disse. O primeiro-ministro promete um novo choque tecnológico na educação no próximo ano lectivo.
Os professores não querem ser “heróis”, querem ser reconhecidos como profissionais que são. Os professores fizeram a revolução tecnológica na sociedade escolar a partir de suas casas e sem apoio governamental. Se os professores são “heróis” hoje, é porque sempre o foram, mas nem sempre foram tratados como tal. A sociedade nem sempre os tratou como hoje os trata.
Pouco antes de a pandemia começar, os professores eram agredidos, física e psicologicamente, quase diariamente, por alunos e familiares. Viram-lhes negado a contabilização, sem retroactividade, da contagem de todo o tempo perdido durante o congelamento, para efeitos de carreira, como aconteceu com as carreiras gerais da função pública. Viram situações de injusta ultrapassagem na carreira acontecer entre colegas, sem qualquer salvaguarda por parte da tutela. Viram construir, na sociedade, uma imagem de “bestas” que apenas queriam aumentos e mais dinheiro.
São estes profissionais que hoje dão o seu melhor, na primeira ou na segunda linha, para que nada falte aos nossos doentes e às nossas crianças, os mais frágeis da nossa sociedade. Ontem passaram, ou fizeram-nos passar por “bestas”, hoje chamam-nos de “heróis”. Todos são apenas dos melhores profissionais do mundo, tal como todos os outros que todos os dias se levantam de manhã para ir cumprir a missão que escolheram nas suas vidas.
Rui Gualdino Cardoso
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