--------------------------
How good, really, was Pablo Picasso?
Sebastian Smee
Picasso azul, Picasso rosa, Picasso cubista, Picasso social, Picasso surrealista, Picasso ceramista, Picasso tardio. Picasso em roupa interior, Picasso de lacinho. Picasso Arlequim , Picasso na tourada, o Picasso dos poetas, o Picasso dos IGs. Picasso, anti-fascista, Picasso comunista, a pomba da paz de Picasso. Picasso sentimental, Picasso lascivo.
Sim, Pablo Picasso estava em todo o lado. Morreu há 50 anos, aos 91 anos e ainda estamos a tentar arrumar a sua confusão.
Onde os célebres artistas americanos do pós-guerra - Jackson Pollock, Mark Rothko, Helen Frankenthaler, Roy Lichtenstein - tiveram a delicadeza de se apresentarem num estilo definido, com assinatura e de se lhe manterem fiéis, Picasso foi o derradeiro metamorfo. Como artista e como homem, era tão espantosamente multifacetado que só nos resta reduzi-lo a uma espécie de sinal. Picasso = a um génio proteano.
Uma linha clara liga a descrição de Picasso como "uma soma de destruições", o mantra capitalista da "destruição criativa" e o lema interno do Facebook "Move fast and break things". Sublinhar a obra de Picasso como uma essência de pura criatividade facilita o marketing e a venda de bilhetes pelos museus.
Este ano, na Europa e América do Norte, foram organizadas cerca de 50 exposições no âmbito da "Celebração de Picasso 1973-2023", uma iniciativa com o apoio dos governos francês e espanhol.
Estive recentemente a jantar com um artista célebre e a sua esposa, uma médica. Pensando já neste ensaio, levantei o tema de Picasso. "Obviamente, ele foi espantoso", disse eu à médica. "Mas há algum Picasso que realmente se ame? Alguma das suas obras se leva consigo, se sente próximo do coração? Porque às vezes tenho dificuldade em pensar em alguma". O marido, o artista, ouviu-me do outro lado da sala e respondeu: "dúzias". Há dúzias".
Tem razão, é claro. Picasso tem sido uma fonte infinita de ideias, inveja e inspiração para os artistas. Um crítico que tenta questionar ou minar isto soa como um tolo, presunçoso e superficial.
Que Picasso era misógino, não é uma afirmação polémica. Sim, ele era uma companhia electrizante e, sim, muitas mulheres inteligentes e formidáveis apaixonaram-se por ele. Mas tratou-as sempre (os registos são claro), abominavelmente. A misoginia é sintoma de uma imaginação estreita e frustrada. A inteligência de Picasso era imensa e ampla, mas tornou a sua arte mais limitada e menos interessante, ao transformá-la num índice bizarrarramente obsessivo da sua histeria ambivalência para com as mulheres.
Os analistas dos volumes de "Uma Vida de Picasso" de John Richardson viram-se incapazes de ignorar a questão. Siri Hustvedt, revendo o quarto e último volume, falou do "narcisismo maligno" de Picasso, acrescentando que, apesar do seu brilhantismo, "o repertório emocional da obra, especialmente à medida que envelheceu, é muito mais limitado do que muitas vezes é percebido".
Avaliando o terceiro volume, Hilary Spurling, no Guardian, observou que "grandes trechos deste livro foram lidos como um manual de descodificação" (para interpretar o hábito de Picasso de usar a sua arte para ajustar contas e espalhar órgãos sexuais).
Richardson, que morreu em 2019, tinha uma teoria credível de que Picasso se via a si próprio como um exorcista ou xamã. A ideia foi fundamentada na infância do artista e em coisas que ele disse mais tarde em 1907, sobre as "Les Demoiselles d'Avignon". Picasso interrogava "a misoginia atávica para com as mulheres que supostamente se esconde na psique de todos os homens andaluzes de sangue puro". "O que isto parece significar", concluiu Spurling na sua crítica, "é que o ódio às mulheres alimentou muitas das maiores obras de Picasso".
Vale a pena notar aqui o deslize semântico da ideia de que Picasso estava a interrogar a misoginia até à conclusão de Spurling de que o seu trabalho era alimentado por ela. É evidente que eles se sobrepõem, mas também há uma diferença. A antiga guerra dos sexos é um assunto legítimo da arte. Obras de arte que exprimem poderosamente a inimizade sexual (e a obra de Picasso está cheia delas) podem ser um antídoto para as complacências dos homens feministas que pensam que já perceberam tudo e não reconhecem aquilo a que Germaine Greer chamou a natureza "radical, trágica e esmagadora" do conflito de género e "a total incapacidade de um dos sexos para compreender o outro".
A apresentação de Picasso do conflito, em obras como "Les Demoiselles d'Avignon", pode ser tão contundente que sentimos o que chamamos "civilização" a encolher diante dos nossos olhos.
Mas pode também tornar-se incrivelmente enfadonho.
How good, really, was Pablo Picasso?
Sebastian Smee
Picasso azul, Picasso rosa, Picasso cubista, Picasso social, Picasso surrealista, Picasso ceramista, Picasso tardio. Picasso em roupa interior, Picasso de lacinho. Picasso Arlequim , Picasso na tourada, o Picasso dos poetas, o Picasso dos IGs. Picasso, anti-fascista, Picasso comunista, a pomba da paz de Picasso. Picasso sentimental, Picasso lascivo.
Sim, Pablo Picasso estava em todo o lado. Morreu há 50 anos, aos 91 anos e ainda estamos a tentar arrumar a sua confusão.
Onde os célebres artistas americanos do pós-guerra - Jackson Pollock, Mark Rothko, Helen Frankenthaler, Roy Lichtenstein - tiveram a delicadeza de se apresentarem num estilo definido, com assinatura e de se lhe manterem fiéis, Picasso foi o derradeiro metamorfo. Como artista e como homem, era tão espantosamente multifacetado que só nos resta reduzi-lo a uma espécie de sinal. Picasso = a um génio proteano.
Pablo Picasso's “Self-Portrait With Palette,” 1906. Oil on canvas. (Philadelphia Museum of Art/A. E. Gallatin Collection)
Alguns tentaram lidar com o problema da sua extraordinária produtividade, concentrando-se num ano da sua vida ("Picasso 1906: The Turning Point" no Museo Nacional Centro de Arte Reina Sofia em Madrid) ou apenas três meses ("Picasso em Fontainebleau" no Museu de Arte Moderna de Nova Iorque).
Outros irão domá-lo, fazendo corresponder as suas obras às de outros artistas (El Greco, Max Beckmann, Nicolas Poussin, Joan Miró), ou a escritores (Gertrude Stein) ou a amantes (Fernande Olivier, Françoise Gilot).
Em Junho, o Museu de Brooklyn montará uma exposição, co-curada pela comediante Hannah Gadsby, olhando para Picasso através de uma lente feminista, colocando-o ao lado de artistas como Cindy Sherman, Ana Mendieta e Kiki Smith.
O que irão as pessoas ver em todos estas exposições? Como é que as obras reais de Picasso as irão afectar? Vale a pena perguntar se nos preocupamos com a arte ou com a marca Picasso.
“Girl Before a Mirror,” Pablo Picasso, 1932. (Museum of Modern Art/Estate of Pablo Picasso/Artists Rights Society, New York/Photo by Heidi Bohnenkamp)
Estive recentemente a jantar com um artista célebre e a sua esposa, uma médica. Pensando já neste ensaio, levantei o tema de Picasso. "Obviamente, ele foi espantoso", disse eu à médica. "Mas há algum Picasso que realmente se ame? Alguma das suas obras se leva consigo, se sente próximo do coração? Porque às vezes tenho dificuldade em pensar em alguma". O marido, o artista, ouviu-me do outro lado da sala e respondeu: "dúzias". Há dúzias".
Tem razão, é claro. Picasso tem sido uma fonte infinita de ideias, inveja e inspiração para os artistas. Um crítico que tenta questionar ou minar isto soa como um tolo, presunçoso e superficial.
No entanto, tem havido muitos críticos que ligam o seu carácter enquanto pessoa à sua arte.
“Minotauromachy,” (La Minotauromachie), Pablo Picasso, 1935. Etching and engraving. (Museum of Modern Art/Estate of Pablo Picasso/Artists Rights Society, New York)
Avaliando o terceiro volume, Hilary Spurling, no Guardian, observou que "grandes trechos deste livro foram lidos como um manual de descodificação" (para interpretar o hábito de Picasso de usar a sua arte para ajustar contas e espalhar órgãos sexuais).
O "núcleo emocional" do volume, escreveu ela, era "o relatório detalhado de Richardson, horrendo e desapaixonado, de repetidas agressões pictóricas à medida que o afecto se infiltrava nos retratos de Picasso de [sua mulher] Olga [Khokhlova] para ser substituído por rancor e raiva".
Gadsby colocou-o de forma muito sucinta em "Nanette". Reconhecendo a importância do cubismo, ela, no entanto, desmascarou Picasso pela sua falta de imaginação. "O que ele fez foi colocar um filtro de caleidoscópio no seu pénis", disse ela.
Picasso's “Les Demoiselles d’Avignon,” 1907. Oil on canvas. (Museum of Modern Art/Estate of Pablo Picasso/Artists Rights Society, New York)
Vale a pena notar aqui o deslize semântico da ideia de que Picasso estava a interrogar a misoginia até à conclusão de Spurling de que o seu trabalho era alimentado por ela. É evidente que eles se sobrepõem, mas também há uma diferença. A antiga guerra dos sexos é um assunto legítimo da arte. Obras de arte que exprimem poderosamente a inimizade sexual (e a obra de Picasso está cheia delas) podem ser um antídoto para as complacências dos homens feministas que pensam que já perceberam tudo e não reconhecem aquilo a que Germaine Greer chamou a natureza "radical, trágica e esmagadora" do conflito de género e "a total incapacidade de um dos sexos para compreender o outro".
Mas pode também tornar-se incrivelmente enfadonho.
Dez anos antes de Spurling, Gopnik observou que o problema com muitas obras de Picasso "era menos a misoginia dos assuntos" - por muito difundida que fosse - "do que a banalidade da sua articulação".
Isto, penso eu, é evidente. A pirotecnia pictórica de Picasso pode ser espantosa. Mas o núcleo emocional - ou o núcleo emocional que nos pode tocar - parece frequentemente ausente. O ensaio de Gopnik foi extremamente controverso na altura. Mas um quarto de século depois, parece corajosamente lúcido e, em muitos aspectos, o mundo chegou a essa posição que ele na altura avançou.
Uma das reivindicações mais polémicas de Gopnik era que o melhor trabalho de Picasso se limitava ao "período de quinze anos centrado no cubismo, a Primeira Guerra Mundial e o seu rescaldo imediato". Ao redor deste período elevado, escreveu ele, "estava um vasto mar de kitsch, uma vulgaridade quase sem fundo da imaginação, uma feiúra que não era a feiúra da cabeça da Medusa honesta do modernismo, mas a feiúra gritante da falsidade e do sentimentalismo". "O que tornou o cubismo grande", declarou ele, "não é que tenha dado a Picasso um meio de auto-expressão, mas que actuou como uma barreira à auto-expressão - praticamente a única que ele alguma vez conheceu".
Isto, penso eu, é evidente. A pirotecnia pictórica de Picasso pode ser espantosa. Mas o núcleo emocional - ou o núcleo emocional que nos pode tocar - parece frequentemente ausente. O ensaio de Gopnik foi extremamente controverso na altura. Mas um quarto de século depois, parece corajosamente lúcido e, em muitos aspectos, o mundo chegou a essa posição que ele na altura avançou.
Picasso's “Ma Jolie,” 1911-12. Oil on canvas. (Museum of Modern Art/Estate of Pablo Picasso/Artists Rights Society, New York)
A reivindicação final soa divertida com a influente teoria de T.S. Eliot de que a grande arte é impessoal. Em vez de expressar a personalidade do poeta, argumentou, a poesia (ou arte) deveria ser pensada como uma "fuga à personalidade". ("Mas claro", acrescentou ele, "só aqueles que têm personalidade e emoções sabem o que significa querer fugir a estas coisas").
É fácil dizer, seguindo Eliot, que devemos separar a arte das falhas morais dos seus criadores. Mas é difícil para a maioria de nós abandonar a ideia de que a arte pode, de facto, ser uma expressão da vida interior, e muitas vezes é. Com certos artistas - e Picasso foi um deles - a ligação é tão poderosa que é evidente por si mesma.
Então o que acontece se estivermos desligados, chocados ou simplesmente aborrecidos pelo que supomos da vida interior de um artista?
Então o que acontece se estivermos desligados, chocados ou simplesmente aborrecidos pelo que supomos da vida interior de um artista?
É óbvio que é um problema. Mas não haverá realmente nenhum grande Picasso fora desse período de 15 anos? Será que nada mais se relacionou com significados de valor, profundidade emocional, verdade? Gopnik disse-me por e-mail que desde então moderou a sua opinião, que agora considera "não totalmente errada, mas terrivelmente exagerada". Mas penso que o seu argumento na altura era salutar. É "espantoso", como ele acrescentou no e-mail, "quão rápido um consenso crítico pode mudar; em 1996 dizer tais coisas era chocante; agora só o contrário o faria".
Picasso's “Two Nudes,” late 1906. (Museum of Modern Art/Estate of Pablo Picasso/Artists Rights Society, New York)
Um terceiro obstáculo é o número absoluto de Picassos: cerca de 13.500 quadros, 100.000 gravuras, 700 esculturas e mais de 4.000 cerâmicas. Quantas vezes que se pode ver Picasso usar a mesma notação para um nariz para mudar um retrato frontal para um perfil lateral antes de o truque parecer gasto? Retire a retórica calcificada - Picasso o "génio", o "géiser da criatividade" - e fica com um corpo de trabalho cujo significado humano pode parecer decepcionantemente.
Mas também já revi uma dúzia de exposições de Picasso ao longo dos anos. E tenho de admitir que de cada vez que fui forçado a contemplar honestamente e de perto a sua obra, com as suas coisas mais fracas a serem eliminadas por curadores perspicazes, saí de lá em espanto.
Mas também já revi uma dúzia de exposições de Picasso ao longo dos anos. E tenho de admitir que de cada vez que fui forçado a contemplar honestamente e de perto a sua obra, com as suas coisas mais fracas a serem eliminadas por curadores perspicazes, saí de lá em espanto.
Picasso's “The Old Guitarist,” 1903-04. Oil on canvas. (Helen Birch Bartlett Memorial Collection/Estate of Pablo Picasso/Artists Rights Society, New York)
O Museu de Arte Moderna tem ... muito. Poderia começar com a bela e trémula "Dois Nus", na qual dois corpos femininos pneumaticamente inflados mas estranhamente comprimidos aparecem como se tivessem acabado de sair do século XIX. Poderia então passar a "Les Demoiselles d'Avignon", a mais aterradora de todas as pinturas modernas; "Ma Jolie", o primeiro truque de magia cubista de Picasso; "Glass of Absinthe", uma modesta bugiganga que revolucionou completamente a escultura moderna; "Girl Before a Mirror", a sua brilhante e cativante tomada de um fascínio metafísico antigo; e "Woman Dressing her Hair", uma das grandes evocações da perturbadora proximidade da atracção erótica e repulsa.
Um artista nato, Picasso estava sempre a mudar as regras, convertendo coisas conhecidas em coisas novas. Amigo de muitos poetas, tratava as marcas gráficas como a sua própria linguagem recém cunhada e, tal como os melhores poetas, adorava colisões que forçavam o surgimento de novos significados. O seu trabalho era diarístico, mas abstraía sempre aspectos da sua vida nos reinos do mito e da filosofia, onde a vida, a morte, o tempo e a transformação fazem todos parte do mesmo fenómeno tremendo e interligado. Foi isto que deu à escuridão e à selvageria erótica dos seus anos surrealistas tal poder. Mas enformou toda a sua carreira.
Picasso não era, antes de mais, um escultor, mas a sua inteligência em três dimensões era nada mais nada menos do que flabbergasting. Quando ele virava corpos e rostos do avesso, podia parecer que estava a virar o amor e a repulsa de dentro para fora, de modo que aquilo com que se ficava, psicologicamente, nunca era aquilo com que se entrava. Ele compreendeu (num grau francamente perturbador) a verdade na afirmação de Degas de que "as pessoas que mais amamos são as pessoas que mais poderíamos odiar".
Picasso's “Glass of Absinthe,” 1914. Painted bronze with absinthe spoon. (Museum of Modern Art/Estate of Pablo Picasso/Artists Rights Society, New York/Photo by: John Wronn)
Quando Picasso abstraiu imagens reconhecíveis no reino dos sinais e mitos, como fez repetidamente, estava a expressar intuições sobre como a consciência se relaciona com o mundo objectivo, com os arquétipos e com a nossa capacidade de comunicar - com implicações óbvias para as condições de possibilidade de amor.
As biografias são grandes (a de Richardson, em particular, está cheia de perspicácia), mas não somos obrigados a ver todas as obras de arte em termos biográficos.
A rapacidade do olho saqueador de Picasso", escreveu Spurling (que foi, aliás, o biógrafo de Matisse), "foi correspondida pela velocidade e precisão das suas respostas". ... Ele viu de novo, repensou e recriou o mundo esmagando e agarrando, arrancando ligações". As escolhas de palavras de Spurling evocam uma violência e impiedade que viemos a associar tanto ao homem como aos seus poderes artísticos. Mas é bom lembrar que podemos ser tão impiedosos e egoístas sobre os nossos próprios usos para Picasso como ele foi sobre a arte e as pessoas que explorou.
Não lhe devemos nada. Mas podemos certamente continuar a fazer uso da sua arte.