Portanto o problema é, por um lado, ter-se confundido globalização com permissão de ganância absoluta: ir sempre buscar o mais barato, mesmo em prejuízo das pessoas que se diz servir e do seu próprio país, para obter o máximo lucro de milhares de milhões. Se a indústria aceitasse ter uma margem de lucro um bocadinho menor (ainda ficariam na coluna das centenas ou milhares de milhões, porque é dessa grandeza que se trata) podia fabricar-se os medicamentos nos próprios países ou ir buscar a matéria prima a outros países que não, obrigatoriamente, o mais barato de todos); por outro lado, em situações de crise, como a que estamos, em que todos são chamados a fazer sacrifícios, permitir que a indústria, neste caso a farmacêutica, fique exempta de sacrifícios com o argumento (implícito) de que não abdicam dos seus lucros milionários. Qual é o argumento que sustenta esta não-lógica? Esta é uma questão política, de decisão política. Isto é, se os decisores políticos não estão nos bolsos dessas indústrias como trocos.
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Heder Mota Filipe (bastonário dos farmacêuticos) in https://www.dn.pt/falta-de-medicamentos-vai-agravar
A esta situação, poucos laboratórios a produzirem na Europa, veio juntar-se a guerra na Ucrânia e a inflação. "Há matérias-primas que eram produzidas no Leste e que deixaram de o ser, retardando a produção de medicamentos", diz o bastonário. "Por exemplo, o alumínio, que é fundamental para a indústria farmacêutica, porque se não houver alumínio não é possível fabricar os blisters para as embalagens, e só isto já não permite cumprir prazos de fabrico, o que está a resultar numa maior dificuldade em se ter acesso a medicamentos", regista.
Por outro lado, a inflação e o aumento do custo das matérias-primas também torna a produção dos medicamentos mais cara e coloca em risco alguns, que os laboratórios consideram "inviáveis economicamente". É o que está a acontecer nalguns mercados, nomeadamente no português. "Temos um sistema de controlo de preços de medicamentos que está construído para não os deixar aumentar, por princípio. Mas, no momento em que estamos, em que o aumento do custo na produção é significativo, pode haver medicamentos em que o preço em Portugal não compense e que a indústria possa retirar do mercado nacional".
Por isso mesmo, defende, que também para esta situação o Estado já deveria ter criado "um mecanismo legal que obrigasse as empresas a manter o medicamento no mercado, mesmo contra a sua vontade". Esta questão, diz Helder Mota Filipe, também se tem vindo a agravar, porque os laboratórios e os distribuidores acabam por vender estes medicamentos nos mercados em que são mais caros. "O facto de Portugal ser um país em que os medicamentos são mais baratos torna convidativo a que estes sejam vendidos para outros países, deixando o mercado nacional desabastecido, o que é um risco para a saúde pública", explica.
O farmacêutico, que já foi também presidente do Infarmed, assume ser contra "o aumento generalizado do preço dos medicamentos", mas considera que se deve olhar para os que se possam tornar inviáveis economicamente no mercado português. "Temos de ter mecanismos para que, nestes casos, se identifiquem as situações fundamentais e resolvê-las". Por fim, o bastonário diz que a Ordem que dirige tem vindo a alertar publicamente para esta situação e para a realidade das faltas que hoje se vive, assumindo que esta "é uma preocupação" e que ainda não viu que "esteja a ser feito algo para que depois não andemos a correr atrás do prejuízo".