O documento abaixo, uma mera folha de papel era o quanto bastava para que uma pessoa adquirisse a liberdade. E foi conhecido como Carta de Alforria.
Escrita de próprio punho pelo meu bisavô Guilherme Cândido Pinheiro em 1883.
Por trás desse acto de aparente bondade há interesses bem menos humanitários.
Em Portugal a história da escravidão só começa a ser estudada à sério após o 25 de Abril. Apesar do decreto do Marquês de Pombal de 1761 estabelecer o fim do trabalho escravo em território português somente em 1869 terminaria essa nódoa no passado da humanidade. A última pessoa escravizada em Portugal foi uma mulher centenária, figura muito conhecida aqui em Lisboa onde viveu entre o Poço dos Negros e o Bairro Alto e que faleceu em 1930 e que era vendedora ambulante de amendoim.
Transcrevo o texto que já conheço de cor e passo a citar:
Escrita de próprio punho pelo meu bisavô Guilherme Cândido Pinheiro em 1883.
Por trás desse acto de aparente bondade há interesses bem menos humanitários.
Em Portugal a história da escravidão só começa a ser estudada à sério após o 25 de Abril. Apesar do decreto do Marquês de Pombal de 1761 estabelecer o fim do trabalho escravo em território português somente em 1869 terminaria essa nódoa no passado da humanidade. A última pessoa escravizada em Portugal foi uma mulher centenária, figura muito conhecida aqui em Lisboa onde viveu entre o Poço dos Negros e o Bairro Alto e que faleceu em 1930 e que era vendedora ambulante de amendoim.
Transcrevo o texto que já conheço de cor e passo a citar:
Eu abaixo assinado pela presente declaro que concedo plena liberdade a meu escravo Tibúrcio, africano de 50 anos mais ou menos a fim de que dela goze como se de Ventre Livre nascera. E para constar mandei passar a presente que assino.
Ora bem, o pobre do Tibúrcio foi trazido algures de África e trabalhou uma vida toda sendo considerado propriedade de outrém. Com cerca de 50 anos iria fazer o quê? Quando eram jovens batiam a porta e iam à vida mas por medo e insegurança muitas vezes permaneciam em casa dos antigos senhores em troca de um salário irrisório.
O bisavô Guilherme, como já disse, tinha negócios na terra natal, Melgaço e no Rio de Janeiro.
Não era fazendeiro, tudo girava em torno do comércio e na sua casa brasileira possuía cinco escravos domésticos, cujas respectivas cartas de alforria estão em meu poder. Dois homens maduros, ambos africanos de nascença, o Tibúrcio e o António. E duas mulheres mais novas, ditas crioulas ou ladinas por já terem nascido numa sanzala no Brasil. E finalmente uma jovem, natural da antiga Província do Ceará e que fora comprada no Mercado do Valongo aos 14 anos de idade, descrita de forma brasileira como parda, o que quer dizer que era mestiça.
Primos meus que vieram em Angola contavam que geralmente a cozinha era comandada por homens. No Brasil era o contrário. Certamente o António e o Tibúrcio tinham entre seus ofícios cocheiro, jardineiro, encarregado das obras de manutenção da casa e do cuidado da horta caso houvesse. Se sobrasse tempo livre a legislação permitia que o senhor alugasse seu escravo ao dia para diferentes actividades e esses homens eram chamados de negros de ganho. O dinheiro que recebiam durante a jornada seria entregue ao seu senhor. Às duas mulheres cabia o trabalho interno, a cozinha, a limpeza de dentro, lavar, engomar e brunir a roupa. A rapariga novinha foi baptizada com o curioso nome de Syomara e imagino que a ela foi destinado o serviço menos pesado, servir a mesa, os trabalhos de costura e eventualmente de dama de companhia da bisavó Maricota.
E eis que em 1883 o Guilherme se levanta todo pimpão e bem disposto, roído de remorsos e pleno de graça cristã e decide que aquelas pessoas livres seriam.
Da mesma forma que o Coelhinho da Páscoa e o Pai Natal não existem crises de consciência nem sempre ocorrem de forma gratuita e espontânea.
É preciso rever o contexto histórico. O Segundo Império no Brasil sob a figura soberana de Dom Pedro II vive seus momentos de agonia e o seu fim se anuncia. A República é iminente e os Movimentos Abolicionistas pululam por todo lado. Prevendo o inevitável o Imperador reconhece que é preciso preparar terreno e suavizar o impacto no modelo económico do país na altura da transição.
Assim promove a emancipação da população escravizada em larga escala concedendo aos senhores títulos honoríficos em troca da liberdade de seus servos.
O bisavô Guilherme conquistou fama, dinheiro e poder e para coroar com êxito sua ascensão social só lhe faltava mesmo um título de Barão ou Visconde. E trata de alforriar toda gente e munido de muitos documentos troca imensa correspondência com a Corte onde solicita que o agraciem com um título de nobreza à medida de sua ambição e vaidade?
Mas conseguiria chegar lá?
Depois eu conto...
Carlos Pinheiro
(publicado com autorização do autor)