Num texto forte, Scorsese castiga as plataformas de streaming
Num longo ensaio sobre Federico Fellini, o cineasta recordou que a omnipotência das plataformas de streaming ameaça seriamente a nossa visão das obras de arte.
Martin Scorsese está seriamente preocupado com o futuro do cinema. Já em 2019, tinha comparado os filmes Marvel a "parques de diversão" e lamentou a omnipresença de blockbusters na paisagem cinematográfica, com desagrado de mestres como Joss Whedon ou James Gunn.
Hoje, numa altura em que a indústria está a abrandar devido à pandemia, publica um ensaio sobre Fellini para a Harper's Magazine, intitulado Il Maestro e, mais uma vez, defende a sua visão da sétima arte.
Volta em particular à definição do termo "cinema", que hoje parece perigosamente reduzida à de "conteúdo": "Até há quinze anos, o que é muito recente, o termo "conteúdo" só era entendido quando as pessoas discutiam o cinema de uma forma séria, em comparação com a "forma".
Depois, pouco a pouco, foi sendo utilizado cada vez mais por pessoas que assumiram o controlo de empresas de comunicação social, a maioria das quais nada sabia sobre a história da arte, ou mesmo não se importava", escreve ele, visando explicitamente os gigantes do streaming.
Embora o cineasta recorde que também ele beneficiou do apoio da plataforma - Netflix produziu o seu último filme, The Irishman e a Apple irá produzir o próximo, Killers of the Flower Moon - ele denuncia esta nova era em que "o cinema é sistematicamente desvalorizado, marginalizado, depreciado e reduzido ao seu mínimo denominador comum: conteúdo". Este termo refere-se a "um filme de David Lean, um vídeo de gato, um comercial do Super Bowl, uma sequela de super-herói, um episódio em série", acrescenta ele.
A ilusão de escolha democrática
"A apresentação de todo o tipo de filmes como conteúdo criou esta situação em que tudo é apresentado ao mesmo nível ao espectador. Cria a ilusão de escolha democrática, mas não é esse o caso. Porque este conteúdo é sugerido por algoritmos baseados no que já se viu", continua ele.
"Então é sugerido de acordo com o tema do filme ou do seu género, mas o que é que isso tem a ver com a arte do cinema? A cura não é "antidemocrática" ou "elitista", um termo que é tão frequentemente utilizado hoje em dia que perde o seu significado. É um acto de generosidade! Partilha-se o que se ama, o que o inspira. A propósito, as melhores plataformas de streaming, como o Criterion Channel ou MUBI, ou canais tradicionais como o MTC, fazem uma verdadeira cura. Os algoritmos, por definição, baseiam-se em cálculos, que tratam o espectador como um consumidor e nada mais".
Os tesouros da nossa cultura
Martin Scorsese lembra-nos finalmente que deseja defender "o cinema e a importância que este tem na nossa cultura" e apela àqueles que conhecem a história do cinema a partilhá-la em massa: "Temos também de fazer compreender àqueles que detêm os direitos sobre estes filmes que eles representam muito mais do que um produto que pode ser explorado e depois deitado fora. Eles são os maiores tesouros da nossa cultura e devem ser tratados dessa forma. Penso que deveríamos redefinir a nossa noção do que é o cinema. E o que não é.
Federico Fellini é uma boa maneira de iniciar esta reflexão. Pode dizer muitas coisas sobre os seus filmes, mas há uma coisa que é indiscutível: são obras de cinema. O seu trabalho a longo prazo tem sido a definição desta forma de arte.
Chamando ao falecido Fellini um "virtuoso do cinema", Scorsese conclui: "Tudo mudou - o cinema e a sua importância na nossa cultura.
Claro que não é surpreendente que artistas como Godard, Bergman, Kubrick e Fellini, que em tempos governaram a nossa grande forma de arte como deuses, acabaram por se retirar para as sombras ao longo do tempo. Mas neste momento não podemos tomar nada como garantido.
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O que ele diz do cinema é o que se passa ao nível da cultura em geral e da educação em particular: dar às pessoas o que elas querem. Só que, em primeiro lugar não sabemos o que elas querem. Pelo facto de verem novelas daí não se segue que é o que querem ver: é aquilo a que têm acesso, de modo que é o que vêem e no reino do digital o algoritmo é rei. Em segundo lugar, em áreas da arte e da educação, em particular, dar às pessoas só que eles querem, ou seja, o que elas já conhecem e já gostam, é impedi-las de aceder a formas mais complexas, mais ricas, mais inspiradoras, etc.. da cultura. Como li outro dia um professor universitário, falar de modo simples, com palavras que as pessoas conhecem em frases simples que não as obrigue a fazer esforço é uma opção ética porque o oposto é envergonhá-las e desmotivá-las para a aprendizagem. Nunca vi argumento mais empobrecedor que este, a não ser nas criancices do SE da educação que também pensa assim: para quê dar a conhecer os poetas se os alunos gostam mais de escrever as suas 'opiniões' em plataformas digitais.
Devia escolher-se com um cuidado extremo as pessoas responsáveis por estas áreas da cultura e da educação. No Norte da Europa onde estas pedagogias do coitadinho já estão há muito implementadas na educação, assiste-se a uma gradual diminuição da fasquia geral do QI.
Como diz Scorsese, um autor partilha o que o inspira, aquilo que pensa, a sua maneira particular de ver e pensar o mundo e as relações entre as pessoas e tem uma linguagem própria que nem sempre é fácil. Não tem que ser fácil, nem ir ao encontro do que as pessoas quererem, porque na maior parte das vezes nem elas sabem o que querem antes de terem conhecimentos suficientes para perceberem que não sabiam o que pensavam saber.