Destrambelhados do mundo, unamo-nos!
A imbecilidade virtual tem repercussões no mundo real e dela vem mesmo mal ao mundo.
Ana Cristina Leonardo
Quando Umberto Eco, num breve encontro com jornalistas na Universidade de Turim, desabafou que se faziam afirmações nas redes sociais que, anos atrás, só seriam possíveis ao balcão, à frente de um copo de vinho, sem que daí viesse mal ao mundo (“I social media danno diritto di parola a legioni di imbecilli che prima parlavano solo al bar dopo un bicchiere di vino, senza danneggiare la collettività”), não foram poucos os que lhe condenaram o elitismo. Argumentavam os críticos que as redes estavam finalmente a dar voz e espaço aos “não-iluminados”, até então silenciados e sem oportunidade para se exprimirem (a não ser, claro, ao balcão, à frente de um copo de vinho…).
No ano seguinte às declarações de Eco, cujo desabafo teve lugar em 2015, um ano antes da sua morte, assistiríamos à explosão das fake news, termo que se viu associado sobretudo à vitória de Donald Trump sobre Hillary Clinton nos EUA e à campanha pelo "Brexit" no Reino Unido.
As notícias falsas seriam então consideradas tão dominantes, e inquietantes, que a expressão foi eleita como palavra do ano pelo Dicionário Collins logo em 2017, embora, bem vistas as coisas, as fake news não fossem de todo uma novidade – em termos políticos, corresponderão à velhinha propaganda (nunca é demais lembrar que segundo a propaganda nazi, dirigida com incontestável eficácia pelo infame Joseph Goebbels, uma mentira repetida muitas vezes acaba por passar por verdade).
Num texto de 1921, Réflexions d’un Historien sur Les Fausses Nouvelles de la Guerre, que remete, portanto, para o período logo após a Primeira Guerra Mundial, Marc Bloch, historiador francês e um dos fundadores da influente École des Annales, militante da Resistência que acabaria capturado, torturado e executado pela Gestapo em 1944, analisa o fenómeno a partir da sua própria experiência nas trincheiras (cf. História e Historiadores, trad. Telma Costa, Teorema, 1998; mais recente: Apologia da História ou o Ofício do Historiador, trad. Bernardo Cruz e Teresa Furtado, Edições 70, 2025); o que ele aí escreveu há mais de um século não deixa de nos assombrar pela lucidez e exactidão de prognóstico.
A imbecilidade virtual tem repercussões no mundo real e dela vem mesmo mal ao mundo
Alguns exemplos: “As falsas notícias, em toda a multiplicidade das suas formas – simples boatos, imposturas, lendas – preenchem a vida da humanidade”; mais à frente: “Nestas criações de laboratório falta o elemento mais essencial talvez das falsas notícias da história [Bloch acabava de referir-se à experiência levada a cabo em 1902 na Universidade de Berlim pelo criminologista alemão Franz von Liszt, na qual é simulado na sala de aula o assassínio de um professor que tenta intervir na discussão acalorada entre dois estudantes, tendo um deles sacado da pistola e disparado, com as testemunhas, desconhecedoras da ilusão, a prestar os mais díspares e mirabolantes depoimentos e, quanto mais convictas, mais erradas…]. Estas nascerão porventura muitas vezes de observações individuais inexactas ou de testemunhos imperfeitos, mas este acidente original não é tudo; na verdade, só por si, nada explica. O erro só se propaga, só se amplia, só vive com uma condição: encontrar na sociedade em que se difunde um caldo de cultura favorável”; ou, reforçando a mesma ideia: “Se me é permitido utilizar um termo a que os sociólogos deram um valor a meu ver demasiado metafísico, mas que é cómodo e afinal rico de sentido, a falsa notícia é o espelho onde a ‘consciência colectiva’ contempla o seu próprio rosto”.
Há no texto outras observações notáveis e absolutamente actuais: “É fácil acreditar naquilo em que se precisa de acreditar”; há a denúncia bem-humorada da censura, no caso militar, que Bloch exemplifica citando o dramaturgo satírico Pierre Chaine: “Prevalecia nas fronteiras a opinião de que tudo podia ser verdade com excepção do que deixavam imprimir”. E existe uma intuição relevante sobre a forma como se disseminam as notícias falsas, necessitando estas, para se difundirem, de uma rede fluida entre desconhecidos: “As falsas notícias só nascem onde puderem encontrar-se homens vindos de grupos diferentes”. Daí que, segundo Bloch, os boatos chegassem às isoladas trincheiras trazidos pela mão de elementos situados na retaguarda da guerra: “Relações frequentes entre pessoas tornam fácil a comparação entre os diferentes relatos e por isso mesmo excitam o sentido crítico. Pelo contrário, acredita-se firmemente no narrador que vem com grandes intervalos de regiões distintas ou tidas como tais, por caminhos difíceis”.
Tudo isto nos poderá parecer hoje não mais do que evidências. A sê-lo, serão evidências similares às do ovo de Colombo que, depois do navegador o pôr em pé, a todos pareceu procedimento óbvio e até corriqueiro.
Relembrando que a reflexão de Bloch parte especificamente do conflito que assolou a Europa entre 1914-1918 e tendo em conta a sua acuidade – ou seja, a facilidade com que conseguimos transportá-la para o século XXI – caberá talvez perguntar se não nos encontraremos hoje, mesmo aqueles de entre nós que têm sido poupados às bombas, num cenário de guerra (ou, pelo menos, de pré-guerra).
A nível virtual, a guerra está já instalada e as previsões de Eco sobre a disseminação da imbecilidade, para mais assistida pelo algoritmo, são difíceis de negar. Sobretudo ao passarem de assuntos picarescos, como a Teoria da Terra Plana ou as delícias dos pastéis de bacalhau recheados a queijo da Serra, para temas bastante menos inócuos, como o ódio aos judeus, muitas vezes mascarado de discursos anti-Israel ou anti-Governo israelita (ao contrário do que se poderia esperar após o massacre de 7 de Outubro de 2023 levado a cabo pelo Hamas, o anti-semitismo encontrou “um caldo de cultura favorável”), ou a contestação da vacinação de rotina, uma prática capaz de debelar doenças como o sarampo, a meningite ou a febre-amarela. Neste particular, o retrocesso é também ele de monta. Segundo dados publicados este ano pela Unicef, os casos de sarampo tiveram, em 2023, um aumento de 20% em relação a 2022. E, também de 2025, um relatório do Centro Europeu de Prevenção e Controlo de Doenças assinalava que a recusa da vacinação quase fez decuplicar, em 2024, os casos de sarampo no velho continente. Conclusão necessária: a imbecilidade virtual tem repercussões no mundo real e dela vem mesmo mal ao mundo.
Entretanto, o que o italiano não terá porventura previsto, ao recorrer à imagem de un bicchiere di vino, é que podia, e pode, tratar-se de um vinho caríssimo e não necessariamente de uma zurrapa. A chamada “linguagem de taberneiro”, sem ofensa para os taberneiros que, aliás, são grupo em vias de extinção, substituídas as tabernas por wine bars, bastante comum nas guerras de trincheira virtuais, foi igualmente adoptada pelos mais altos dignitários e instituições respeitáveis – por cá, basta-nos observar as sessões parlamentares –, sendo por muitos confundida com “linguagem da verdade”.
E como a ironia vem desde sempre acompanhando a par e passo a história da humanidade, a “linguagem da verdade”, essa curiosa exoneração do superego freudiano que permite verbalizar sem censura “tudo o que nos vai na alma”, espalha-se e vê-se ruidosamente aplaudida numa época que criminaliza “os discursos de ódio” e foi chamada de época de “pós-verdade” (palavra do ano eleita pelo dicionário de Oxford em 2016), na qual os factos se tornaram construções / narrativas e a sua veracidade dispensável ou impossível de aferir. À vista disso, se a realidade é, na realidade, uma mera construção de sujeitos, como avaliar sequer a sua factualidade? De facto!
E pur se muove, como terá dito Galileu. Assim, o destrambelhamento existencial nascido de um mundo em que tudo é e não é, em que tudo pode ser e não ser ao mesmo tempo, mantém-se verificável. Porque a dispensa da verdade não nos conduziu ao universo da mentira, nem isso seria problema de monta: relembro Bloch, “é fácil acreditar naquilo em que se precisa de acreditar”. O destrambelhamento nasce de nos irmos tornando cada vez mais incapazes da destrinça. Com essa incapacidade, virá a indiferença. E a indiferença, é dos livros, é a mãe de todos os males.
Público
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