O que Orwell temia era os que proibiriam livros. O que Huxley temia era não haver motivo para proibir um livro, por não haver ninguém que os quisesse ler.
— Neil Postman, Amusing Ourselves to Death
Foi uma das revoluções mais importantes da história moderna — e, no entanto, não houve derramamento de sangue, nem bombas foram lançadas, nem monarcas foram decapitados.
Talvez nenhuma grande transformação social tenha sido realizada de forma tão silenciosa. Esta ocorreu em poltronas, bibliotecas, cafés e clubes.
O que aconteceu foi o seguinte: em meados do século XVIII, um grande número de pessoas comuns começou a ler.
Durante os primeiros dois séculos após a invenção da imprensa, a leitura continuou a ser, em grande parte, uma actividade da elite. Mas, no início do século XVIII, a expansão da educação e a explosão de livros baratos começaram a difundir rapidamente a leitura entre as classes médias e até mesmo nas classes mais baixas da sociedade.
De repente, parecia que todos estavam a ler em todos os lugares: homens, mulheres, crianças, ricos, pobres. A leitura começou a ser descrita como uma «febre», uma «epidemia», uma «mania», uma «loucura».
Essa transformação é conhecida como a «revolução da leitura». Foi uma democratização sem precedentes da informação; a maior transferência de conhecimento para as mãos de homens e mulheres comuns da história.
Na Grã-Bretanha, apenas 6.000 livros foram publicados na primeira década do século XVIII; na última década do mesmo século, o número de novos títulos ultrapassou os 56.000. Mais de um milhão de novas publicações surgiram em alemão ao longo do século XVIII. O historiador Simon Schama chegou a escrever que «as taxas de alfabetização na França do século XVIII eram muito mais altas do que nos Estados Unidos do final do século XX».
Foi uma época de obras monumentais de pensamento e conhecimento: a Encyclopédie, o Dicionário da Língua Inglesa de Samuel Johnson, Declínio e Queda do Império Romano, de Edward Gibbon, Crítica da Razão Pura, de Immanuel Kant. Ideias radicais e novas sobre Deus, sobre a história, sobre a sociedade, sobre a política e até mesmo sobre todo o propósito e significado da vida inundaram a Europa.
Mais importante ainda, a impressão mudou a forma como as pessoas pensavam.
O mundo da imprensa é ordenado, lógico e racional. Nos livros, o conhecimento é classificado, compreendido, conectado e colocado no seu lugar. Os livros apresentam argumentos, propõem teses, desenvolvem ideias. «Envolver-se com a palavra escrita», escreveu Neil Postman, «significa seguir uma linha de pensamento, o que requer consideráveis poderes de classificação, inferência e raciocínio».
Como Postman apontou, não é por acaso que o crescimento da cultura da imprensa no século XVIII esteja associado ao crescente prestígio da razão, à hostilidade à superstição, ao nascimento do capitalismo e ao rápido desenvolvimento da ciência. Outros historiadores relacionaram a explosão da alfabetização no século XVIII ao Iluminismo, ao nascimento dos direitos humanos, à chegada da democracia e até mesmo ao início da revolução industrial.
O mundo como o conhecemos foi forjado pela revolução da leitura.
Agora, estamos a viver a contra-revolução.
Mais de trezentos anos após a revolução da leitura ter inaugurado uma nova era do conhecimento humano, os livros estão a morrer.
Inúmeros estudos mostram que a leitura está em queda livre. Mesmo os críticos mais pessimistas do século XX da era dos ecrãs teriam dificuldade em prever a dimensão da crise actual.
Nos Estados Unidos, a leitura por prazer caiu 40% nos últimos vinte anos. No Reino Unido, mais de um terço dos adultos afirma ter desistido da leitura. A National Literacy Trust relata quedas «chocantes e desanimadoras» na leitura infantil, que agora está no seu nível mais baixo já registrado. A indústria editorial está em crise: «livros que antes vendiam dezenas, até centenas de milhares de exemplares, agora têm sorte se venderem cerca de quatro mil».
O que aconteceu foi o smartphone, que foi amplamente adoptado nos países desenvolvidos em meados da década de 2010. Esses anos serão lembrados como um divisor de águas na história da humanidade.
Na Grã-Bretanha, apenas 6.000 livros foram publicados na primeira década do século XVIII; na última década do mesmo século, o número de novos títulos ultrapassou os 56.000. Mais de um milhão de novas publicações surgiram em alemão ao longo do século XVIII. O historiador Simon Schama chegou a escrever que «as taxas de alfabetização na França do século XVIII eram muito mais altas do que nos Estados Unidos do final do século XX».
Mais importante ainda, a impressão mudou a forma como as pessoas pensavam.
O mundo da imprensa é ordenado, lógico e racional. Nos livros, o conhecimento é classificado, compreendido, conectado e colocado no seu lugar. Os livros apresentam argumentos, propõem teses, desenvolvem ideias. «Envolver-se com a palavra escrita», escreveu Neil Postman, «significa seguir uma linha de pensamento, o que requer consideráveis poderes de classificação, inferência e raciocínio».
Como Postman apontou, não é por acaso que o crescimento da cultura da imprensa no século XVIII esteja associado ao crescente prestígio da razão, à hostilidade à superstição, ao nascimento do capitalismo e ao rápido desenvolvimento da ciência. Outros historiadores relacionaram a explosão da alfabetização no século XVIII ao Iluminismo, ao nascimento dos direitos humanos, à chegada da democracia e até mesmo ao início da revolução industrial.
Agora, estamos a viver a contra-revolução.
Mais de trezentos anos após a revolução da leitura ter inaugurado uma nova era do conhecimento humano, os livros estão a morrer.
Inúmeros estudos mostram que a leitura está em queda livre. Mesmo os críticos mais pessimistas do século XX da era dos ecrãs teriam dificuldade em prever a dimensão da crise actual.
Nos Estados Unidos, a leitura por prazer caiu 40% nos últimos vinte anos. No Reino Unido, mais de um terço dos adultos afirma ter desistido da leitura. A National Literacy Trust relata quedas «chocantes e desanimadoras» na leitura infantil, que agora está no seu nível mais baixo já registrado. A indústria editorial está em crise: «livros que antes vendiam dezenas, até centenas de milhares de exemplares, agora têm sorte se venderem cerca de quatro mil».
O que aconteceu foi o smartphone, que foi amplamente adoptado nos países desenvolvidos em meados da década de 2010. Esses anos serão lembrados como um divisor de águas na história da humanidade.
Nunca antes tinha existido uma tecnologia como o smartphone. Enquanto as tecnologias de entretenimento anteriores, como o cinema ou a televisão, tinham como objetivo capturar a atenção do público por um período, o smartphone exige toda a sua vida. Os telemóveis são projectados para serem hiper-viciantes, prendendo os utilizadores a uma dieta de notificações inúteis, vídeos curtos sem sentido e iscos de raiva nas redes sociais.
Actualmente, uma pessoa passa, em média, sete horas por dia a olhar para um ecrã. Para a Geração Z, esse número é de nove horas. Um artigo recente do The Times descobriu que, em média, os estudantes modernos estão destinados a passar 25 anos das suas vidas acordados a fazer scroll em ecrãs.
Se a revolução da leitura -no século XVIII- representou a maior transferência de conhecimento na História para homens e mulheres comuns, a revolução dos ecrãs representa o maior roubo de conhecimento das pessoas comuns na História.
As nossas universidades estão na linha da frente desta crise. Agora estão a ensinar as suas primeiras turmas verdadeiramente «pós-alfabetizadas» de estudantes, que cresceram quase inteiramente no mundo dos vídeos curtos, jogos de computador, algoritmos viciantes (e, cada vez mais, IA).
Um estudo com estudantes de literatura inglesa em universidades americanas descobriu que eles eram incapazes de compreender o primeiro parágrafo do romance Bleak House, de Charles Dickens — um livro que antes era lido regularmente por crianças.
Um artigo publicado na revista The Atlantic, intitulado «Os estudantes universitários de elite que não sabem ler livros», cita a experiência característica de um professor:
«A maioria dos nossos alunos é funcionalmente analfabeta».Um artigo publicado na revista The Atlantic, intitulado «Os estudantes universitários de elite que não sabem ler livros», cita a experiência característica de um professor:
Há vinte anos, as aulas de Dames não tinham problema em envolver discussões sofisticadas sobre Orgulho e Preconceito numa semana e Crime e Castigo na seguinte. Agora, os seus alunos dizem-lhe abertamente que a carga de leitura parece impossível. Não é apenas o ritmo frenético; eles têm dificuldade em prestar atenção aos pequenos detalhes enquanto acompanham o enredo geral.
A tradição do aprendizado é um precioso fio de ouro de conhecimento que atravessa a História da humanidade, ligando leitor a leitor através do tempo. Esse fio rompeu-se pela última vez durante o colapso do Império Romano Ocidental, quando as hordas bárbaras invadiram as fronteiras, as cidades encolheram e as bibliotecas foram queimadas ou destruídas.
À medida que o mundo da elite educada de Roma desmoronava, muitos escritores e obras literárias desapareceram da memória humana — seja para serem perdidos para sempre, seja para serem redescobertos centenas de anos depois, no Renascimento.
Esse fio dourado está a partir-se pela segunda vez.
Uma tragédia intelectual
Após a introdução dos smartphones em meados da década de 2010, as pontuações globais do PISA — a mais famosa medida internacional da capacidade dos alunos — começaram a diminuir. Os alunos afirmam cada vez mais em inquéritos que têm dificuldade em pensar, aprender e concentrar-se. Notará o ponto de inflexão revelador em meados da década de 2010:
E, como diz Burn Murdoch, essas questões cognitivas não se restringem às escolas e universidades. Afectam a todos: «o declínio nas medidas de raciocínio e resolução de problemas não se limita aos adolescentes. Os adultos apresentam um padrão semelhante, com declínios visíveis em todas as faixas etárias».
O mais intrigante — e alarmante — é o caso do QI, que aumentou consistentemente ao longo do século XX (o chamado «efeito Flynn»), mas que agora parece ter começado a diminuir.
O resultado não é apenas a perda de informação e inteligência, mas um empobrecimento trágico da experiência humana.
Durante séculos, quase todas as pessoas instruídas e inteligentes acreditaram que a literatura e o conhecimento estão entre os mais elevados propósitos e os mais profundos consolos da existência humana.
Os clássicos foram preservados ao longo dos séculos porque contêm, na famosa frase de Matthew Arnold, «o melhor que foi pensado e dito».
Os melhores romances e poemas enriquecem o nosso sentido da experiência humana, colocando-nos imaginativamente dentro de outras mentes e levando-nos a outros tempos e outros lugares. Ao ler não ficção — ciência, história, filosofia, literatura de viagens — ficamos profundamente familiarizados com o nosso lugar no mundo extraordinário e complicado em que temos o privilégio de viver.
A epidemia de ansiedade, depressão e falta de propósito que afecta os jovens do século XXI está frequentemente ligada ao isolamento e à comparação social negativa promovida pelos smartphones.
É também um produto directo da futilidade, fragmentação e trivialidade da cultura da tela, que é totalmente incapaz de atender às profundas necessidades humanas de curiosidade, narrativa, atenção profunda e realização artística.
Os melhores romances e poemas enriquecem o nosso sentido da experiência humana, colocando-nos imaginativamente dentro de outras mentes e levando-nos a outros tempos e outros lugares. Ao ler não-ficção — ciência, história, filosofia, literatura de viagens — ficamos profundamente familiarizados com o nosso lugar no mundo extraordinário e complicado em que temos o privilégio de viver.
Este esvaziamento da cultura, do pensamento crítico e da inteligência representa uma perda trágica do potencial humano e do florescimento humano. É também um dos maiores desafios que as sociedades modernas enfrentam. A nossa civilização vasta, interligada, tolerante e tecnologicamente avançada baseia-se nos tipos de pensamento complexos e racionais promovidos pela alfabetização.
Como Walter Ong escreve no seu livro Oralidade e Alfabetização, certos tipos de pensamento complexo e lógico simplesmente não podem ser alcançados sem a leitura e a escrita. É praticamente impossível desenvolver um argumento detalhado e lógico numa oralidade espontânea — perder-se-ia o fio da meada.
Como exemplo extremo, pense em alguém tentando simplesmente recitar uma famosa obra de filosofia. Digamos, A Crítica da Razão Pura, de Kant, com 900 páginas, ou o Tractatus, de Ludwig Wittgenstein, ou O Ser e o Nada, de Sartre. Seria impossível fazer isso. E também impossível ouvir.
Para compreender adequadamente o livro, é preciso tê-lo à sua frente para poder reler as partes que não compreende, verificar as conexões lógicas e meditar sobre as passagens importantes até realmente as assimilar. Esse tipo de pensamento avançado é inseparável da leitura e da escrita.
O classicista Eric Havelock argumentou que a chegada da alfabetização na Grécia antiga foi o catalisador para o nascimento da filosofia. Quando as pessoas passaram a ter um meio de registrar as ideias no papel para questioná-las, refiná-las e desenvolvê-las, nasceu uma forma revolucionária de pensamento analítico e abstrato — que viria a moldar toda a nossa civilização. Com o nascimento da escrita, as formas de pensamento estabelecidas puderam ser questionadas e aprimoradas. Essa foi a libertação cognitiva da nossa espécie.
A filosofia não pode existir sem crítica... a escrita torna possível e conveniente submeter o pensamento a um escrutínio contínuo e concentrado. A escrita congela a fala e, ao fazê-lo, dá origem ao gramático, ao lógico, ao retórico, ao historiador, ao cientista — todos aqueles que precisam ter a linguagem diante de si para poderem ver o que ela significa, onde erra e para onde leva.Não só a filosofia, mas toda a infraestrutura intelectual da civilização moderna depende do tipo de pensamento complexo inseparável da leitura e da escrita: escritos históricos sérios, teoremas científicos, propostas políticas detalhadas e os tipos de debate político rigoroso e imparcial conduzido em livros e revistas.
Essas formas de pensamento avançado fornecem os alicerces intelectuais da modernidade. Se o nosso mundo parece agora instável, é porque esses alicerces estão a desmoronar-se sob os nossos pés.
Como provavelmente já reparou, o mundo do ecrã será um lugar muito mais agitado do que o mundo da impressão: mais emocional, mais irritado, mais caótico.
Um livro não pode gritar ou chorar. Sem esses apelos que derrotam a lógica os autores dependem muito mais da razão, condenados a montar dolorosamente os seus argumentos frase por frase (sinto essa agonia agora).
É por isso que Ong observou que as sociedades «orais» pré-alfabetizadas muitas vezes impressionam os visitantes de países alfabetizados como notavelmente místicas, emocionais e antagónicas no seu discurso e pensamento.
A ascensão destes estilos de pensamento emocionais e irracionais representa um profundo desafio para a nossa cultura e política.
Talvez estejamos prestes a descobrir que não é possível administrar a civilização mais avançada da história do planeta com o aparato intelectual de uma sociedade pré-alfabetizada.
O fim da criatividade
A era da imprensa foi caracterizada por um dinamismo e uma riqueza cultural sem precedentes. A leitura é a pedra angular da criatividade e da inovação, fundamentais para a modernidade.
Os leitores assíduos estão sobre-representados em quase todas as áreas da realização humana - da política à ciência, da filosofia à arte.
Como Elizabeth Eisenstein argumenta em The Printing Revolution in Early Modern Europe, a invenção da imprensa ajudou a catalisar uma série de revoluções culturais que forjaram o mundo moderno: o Renascimento, a Reforma e a revolução científica. Outros historiadores acrescentariam o Iluminismo, o nascimento dos direitos humanos e a revolução industrial.
Eisenstein explica como a tendência da leitura para promover a inovação se manifestou nas universidades renascentistas. Com a invenção da impressão, os estudantes tiveram maior acesso a livros, permitindo que «os alunos brilhantes fossem além do alcance dos seus professores. Os alunos talentosos já não precisavam de se sentar aos pés de um determinado mestre para aprender uma língua ou uma competência académica».
Esses estudantes são apenas um sintoma da cultura estagnada da era dos ecrãs, caracterizada pela simplicidade, repetitividade e superficialidade. Os seus sintomas são observáveis em todo o lado à nossa volta.
As canções pop de todos os géneros estão a tornar-se mais curtas, mais simples e mais repetitivas, e os filmes estão a ser reduzidos a fórmulas de franquias repetidas incessantemente.
Estudos sugerem que o número de invenções «disruptivas» e «transformadoras» está a diminuir. Mais dinheiro do que nunca na história é gasto em investigação científica, mas a taxa de progresso «mal consegue acompanhar o ritmo do passado».
Sem dúvida, muitos factores estão em acção, mas isso também é exactamente o que se esperaria de uma geração de pesquisadores que passou a infância colada a ecrãs, em vez de ler ou pensar.
Se o mundo letrado era caracterizado pela complexidade e inovação, o mundo pós-letrado é caracterizado pela simplicidade, ignorância e estagnação. Provavelmente não é por acaso que o declínio da alfabetização deu lugar a uma obsessão pela «nostalgia» cultural; um desejo de reciclar incessantemente as formas culturais do passado: os programas de televisão e estilos dos anos 90, por exemplo, ou a moda do início dos anos 2000.
A nossa cultura está a ser transformada num deserto de smartphones.
Cortados das riquezas culturais do passado, estamos condenados a viver num presente eterno e narcisista. Privados das ferramentas críticas para questionar e desenvolver as ideias daqueles que nos precederam, estamos condenados a repetir e pastichar incessantemente a nós próprios, filme de super-heróis após filme de super-heróis, canção pop repetitiva após canção pop repetitiva.
Acima de tudo, esta cultura cada vez mais trivial e irracional é uma calamidade para a nossa política.
A morte da democracia
Curiosamente, do ponto de vista actual, a revolução da leitura do século XVIII foi acompanhada não apenas por entusiasmo, mas também por um pânico moral.
Mas, em retrospectiva, estes moralistas conservadores tinham razão em preocupar-se. A rápida expansão da alfabetização ajudou a destruir o mundo ordenado, hierárquico e profundamente desigual que eles tanto apreciavam.
A revolução da leitura foi uma catástrofe para os aristocratas ultra-privilegiados e exploradores do antigo regime aristocrático europeu — o antigo sistema autocrático de governo com reis todo-poderosos no topo, senhores e clérigos abaixo e camponeses sofrendo na base.
A ignorância era a pedra angular da Europa feudal. As vastas desigualdades da ordem aristocrática podiam ser parcialmente mantidas porque a população não tinha como descobrir a dimensão da corrupção, dos abusos e das ineficiências dos seus governos.
E a antiga hierarquia feudal era justificada não tanto por argumentos lógicos, mas pelo que Walter Ong poderia ter reconhecido como apelos pré-alfabetizados ao pensamento místico e emocional.
Era o que os historiadores do século XVII conhecem como a cultura «representacional» do poder, o sistema altamente visual de propaganda monárquica que impunha aos seus súbditos a imagem temível e inspiradora de reverência do rei. O regime exibia o seu poder em desfiles, pinturas, fogos de artifício, estátuas e edifícios grandiosos.
O sistema funcionava numa época anterior à alfabetização em massa mas, à medida que o conhecimento se espalhou pela sociedade e os modos analíticos e críticos de pensar promovidos pela imprensa se consolidaram, toda a atmosfera mental e cultural que sustentava a velha ordem foi destruída. As pessoas começaram a saber e pensar.
A ordem feudal parece ser fundamentalmente incompatível com a alfabetização. O historiador Orlando Figes observou que as revoluções inglesa, francesa e russa ocorreram em sociedades nas quais a alfabetização se aproximava de 50%.
O livro de Robert Darnton, The Revolutionary Temper, narra o caos desencadeado no antigo regime francês pela era da imprensa. O conhecimento espalhou-se pela sociedade francesa com efeitos desastrosos: prisioneiros políticos escreveram memórias que foram best-sellers, divulgando a sua injusta prisão pelo Estado; pessoas comuns consumiram panfletos sobre a riqueza exorbitante e injusta desfrutada pelos aristocratas; as finanças desastrosas do governo foram repentinamente debatidas por um público incrédulo e furioso, em vez de atrás de portas fechadas nos bastidores de Versalhes.
Entretanto, os modos analíticos e críticos de pensar começaram a corroer os fundamentos místicos e emocionais da velha ordem. Os filósofos e pensadores radicais do Iluminismo, apoiados por um público crescente da classe média, começaram a fazer perguntas críticas que eram predominantemente baseadas na imprensa. De onde vem o poder? Por que alguns homens têm muito mais do que outros? Por que nem todos os homens são iguais?
Em Amusing Ourselves to Death, Neil Postman argumenta que a democracia e a imprensa escrita são praticamente inseparáveis. Uma democracia eficaz pressupõe uma cidadania razoavelmente informada e um tanto crítica, capaz de compreender e debater as questões do dia em detalhes e em profundidade.
A democracia extrai uma força imensurável da imprensa escrita — o velho mundo moribundo dos livros, jornais e revistas — com a sua tendência para promover o conhecimento profundo, o argumento lógico, o pensamento crítico, a objectividade e o envolvimento imparcial. Neste ambiente, as pessoas comuns têm as ferramentas para compreender os seus governantes, criticá-los e, talvez, mudá-los.
Postman cita os debates Lincoln-Douglas de 1858, nos quais ambos os candidatos presidenciais falaram por um tempo incrível e com detalhes notáveis, como um dos pontos altos da cultura impressa:
A política na era dos vídeos curtos favorece o aumento das emoções, a ignorância e as afirmações sem fundamento. Tais circunstâncias são altamente propícias para charlatões carismáticos.
Sem dúvida, muitos factores estão em acção, mas isso também é exactamente o que se esperaria de uma geração de pesquisadores que passou a infância colada a ecrãs, em vez de ler ou pensar.
Se o mundo letrado era caracterizado pela complexidade e inovação, o mundo pós-letrado é caracterizado pela simplicidade, ignorância e estagnação. Provavelmente não é por acaso que o declínio da alfabetização deu lugar a uma obsessão pela «nostalgia» cultural; um desejo de reciclar incessantemente as formas culturais do passado: os programas de televisão e estilos dos anos 90, por exemplo, ou a moda do início dos anos 2000.
A nossa cultura está a ser transformada num deserto de smartphones.
Cortados das riquezas culturais do passado, estamos condenados a viver num presente eterno e narcisista. Privados das ferramentas críticas para questionar e desenvolver as ideias daqueles que nos precederam, estamos condenados a repetir e pastichar incessantemente a nós próprios, filme de super-heróis após filme de super-heróis, canção pop repetitiva após canção pop repetitiva.
Acima de tudo, esta cultura cada vez mais trivial e irracional é uma calamidade para a nossa política.
Curiosamente, do ponto de vista actual, a revolução da leitura do século XVIII foi acompanhada não apenas por entusiasmo, mas também por um pânico moral.
«Nenhum amante do tabaco ou do café, nenhum bebedor de vinho ou amante de jogos pode ser tão viciado no seu cachimbo, garrafa, jogos ou mesa de café quanto muitos leitores ávidos são no seu hábito de leitura», bradou um clérigo alemão.Richard Steele temia que «os romances criassem expectativas que o curso normal da vida nunca poderia realizar». É fácil rir destas ansiedades. Passámos toda a nossa vida a ouvir como é virtuoso e sensato ler livros. Como poderia a leitura ser perigosa?
Mas, em retrospectiva, estes moralistas conservadores tinham razão em preocupar-se. A rápida expansão da alfabetização ajudou a destruir o mundo ordenado, hierárquico e profundamente desigual que eles tanto apreciavam.
A ignorância era a pedra angular da Europa feudal. As vastas desigualdades da ordem aristocrática podiam ser parcialmente mantidas porque a população não tinha como descobrir a dimensão da corrupção, dos abusos e das ineficiências dos seus governos.
E a antiga hierarquia feudal era justificada não tanto por argumentos lógicos, mas pelo que Walter Ong poderia ter reconhecido como apelos pré-alfabetizados ao pensamento místico e emocional.
Era o que os historiadores do século XVII conhecem como a cultura «representacional» do poder, o sistema altamente visual de propaganda monárquica que impunha aos seus súbditos a imagem temível e inspiradora de reverência do rei. O regime exibia o seu poder em desfiles, pinturas, fogos de artifício, estátuas e edifícios grandiosos.
A ordem feudal parece ser fundamentalmente incompatível com a alfabetização. O historiador Orlando Figes observou que as revoluções inglesa, francesa e russa ocorreram em sociedades nas quais a alfabetização se aproximava de 50%.
O livro de Robert Darnton, The Revolutionary Temper, narra o caos desencadeado no antigo regime francês pela era da imprensa. O conhecimento espalhou-se pela sociedade francesa com efeitos desastrosos: prisioneiros políticos escreveram memórias que foram best-sellers, divulgando a sua injusta prisão pelo Estado; pessoas comuns consumiram panfletos sobre a riqueza exorbitante e injusta desfrutada pelos aristocratas; as finanças desastrosas do governo foram repentinamente debatidas por um público incrédulo e furioso, em vez de atrás de portas fechadas nos bastidores de Versalhes.
***Vale a pena notar que este relato altamente simplificado exclui claramente muitos dos factores que moldam o desenrolar da história: economia, clima, homens e mulheres individuais, acaso cego. A imprensa por si só não pode trazer paz e democracia (veja-se as consequências da Revolução Russa). E a imprensa não pode abolir as tendências humanas inatas para o partidarismo e a violência (veja-se as consequências da Revolução Francesa). A imprensa certamente não é imune a notícias falsas e teorias da conspiração (veja-se o período que antecedeu a Revolução Francesa). ***Não é preciso acreditar que a imprensa é um sistema de comunicação perfeito e incorruptível para aceitar que ela também é, quase certamente, uma pré-condição necessária para a democracia.
Em Amusing Ourselves to Death, Neil Postman argumenta que a democracia e a imprensa escrita são praticamente inseparáveis. Uma democracia eficaz pressupõe uma cidadania razoavelmente informada e um tanto crítica, capaz de compreender e debater as questões do dia em detalhes e em profundidade.
Postman cita os debates Lincoln-Douglas de 1858, nos quais ambos os candidatos presidenciais falaram por um tempo incrível e com detalhes notáveis, como um dos pontos altos da cultura impressa:
O acordo previa que Douglas falaria primeiro, durante uma hora; Lincoln teria uma hora e meia para responder; Douglas, meia hora para refutar a resposta de Lincoln. Este debate foi consideravelmente mais curto do que aqueles a que os dois homens estavam habituados... em 16 de outubro de 1854, em Peoria, Illinois, Douglas proferiu um discurso de três horas ao qual Lincoln, por acordo, deveria responder.Quando Postman escreveu no final da década de 1980, tais debates já eram impossíveis de imaginar. Ironicamente, os debates televisivos que ele criticou como degradados, pouco informativos e excessivamente emocionais parecem aos telespectadores do século XXI quase comicamente civilizados e altruístas.
A política na era dos vídeos curtos favorece o aumento das emoções, a ignorância e as afirmações sem fundamento. Tais circunstâncias são altamente propícias para charlatões carismáticos.
Inevitavelmente, partidos e políticos hostis à democracia florescem no mundo pós-alfabetizado. O uso do TikTok está correlacionado com o aumento da participação eleitoral de partidos populistas e da extrema direita.
O TikTok, como afirma o escritor Ian Leslie, é «combustível para os populistas»
Para o inferno da estupidez
As grandes empresas de tecnologia gostam de se ver como investidoras na disseminação do conhecimento e da curiosidade mas na verdade, para sobreviverem, precisam promover a estupidez. Os oligarcas da tecnologia têm tanto interesse na ignorância da população quanto os autocratas feudais mais reacionários. A raiva irracional e o pensamento partidário mantêm-nos colados aos telemóveis.
Enquanto as antigas monarquias europeias tinham de tentar (muitas vezes de forma ineficaz) censurar materiais perigosamente críticos, as grandes empresas de tecnologia garantem a nossa ignorância de forma muito mais eficaz, inundando a nossa cultura com raiva, distração e irrelevância.
Estas empresas trabalham activamente para destruir o esclarecimento humano e dar início a uma nova era de trevas.
A revolução dos ecrãs moldará a nossa política tão profundamente quanto a revolução da leitura do século XVIII.
Sem o conhecimento e sem as habilidades de pensamento crítico incutidas pela escrita, muitos dos cidadãos das democracias modernas encontram-se tão desamparados e crédulos quanto os camponeses medievais — movidos por apelos irracionais e propensos ao pensamento de multidão. O mundo após a imprensa assemelha-se cada vez mais ao mundo antes da imprensa.
Superstições e pensamentos anti-democráticos florescem. O conhecimento académico nas universidades é moldado por um partidarismo rígido, não por tolerância e curiosidade.
O TikTok, como afirma o escritor Ian Leslie, é «combustível para os populistas»
Por que razão o [TikTok] beneficia os populistas de forma desproporcional? Porque, quase por definição, o populismo prospera com emoções, não com pensamentos; com sentimentos, não com frases. Os populistas são especialistas em proporcionar aquela sensação de certeza que se tem quando se sabe que se está certo. Eles não querem que se pense. É no pensamento que a certeza morre.A ordem democrática liberal racional e imparcial baseada na imprensa escrita pode não sobreviver a esta revolução.
As grandes empresas de tecnologia gostam de se ver como investidoras na disseminação do conhecimento e da curiosidade mas na verdade, para sobreviverem, precisam promover a estupidez. Os oligarcas da tecnologia têm tanto interesse na ignorância da população quanto os autocratas feudais mais reacionários. A raiva irracional e o pensamento partidário mantêm-nos colados aos telemóveis.
Enquanto as antigas monarquias europeias tinham de tentar (muitas vezes de forma ineficaz) censurar materiais perigosamente críticos, as grandes empresas de tecnologia garantem a nossa ignorância de forma muito mais eficaz, inundando a nossa cultura com raiva, distração e irrelevância.
Estas empresas trabalham activamente para destruir o esclarecimento humano e dar início a uma nova era de trevas.
A revolução dos ecrãs moldará a nossa política tão profundamente quanto a revolução da leitura do século XVIII.
Sem o conhecimento e sem as habilidades de pensamento crítico incutidas pela escrita, muitos dos cidadãos das democracias modernas encontram-se tão desamparados e crédulos quanto os camponeses medievais — movidos por apelos irracionais e propensos ao pensamento de multidão. O mundo após a imprensa assemelha-se cada vez mais ao mundo antes da imprensa.
Superstições e pensamentos anti-democráticos florescem. O conhecimento académico nas universidades é moldado por um partidarismo rígido, não por tolerância e curiosidade.
À medida que o poder, a riqueza e o conhecimento se concentram no topo da sociedade, um público irritado, dividido e desinformado não tem como compreender, analisar, criticar ou mudar o que está a acontecer.
Assim como o advento da imprensa deu o golpe final no mundo decadente do feudalismo, o ecrã está a destruir o mundo da democracia liberal.
À medida que as empresas de tecnologia eliminam a alfabetização e os empregos da classe média, podemos encontrar-nos numa segunda era feudal. Ou talvez estejamos entrando numa era política além da nossa imaginação.
Aconteça o que acontecer, já estamos a ver o mundo que conhecíamos desaparecer. Nada será mais como antes.
Bem-vindos à sociedade pós-alfabetizada.
James Marriott in https://jmarriott.substack.com/p/the-dawn-of-the-post-literate-society



Posts tan largos no son leidos....
ReplyDeleteEsse comentário tem piada porque o post é justamente sobre a decadência da capacidade de ler um texto longo, seguir raciocínios complexos, etc...
DeleteParto do princípio que as pessoas que estão verdadeiramente interessadas em resolver os problemas também estão interessadas em estar informadas e em compreendê-los em toda a sua complexidade. Por isso, deixo aqui as informações e as reflexões que me parecem ter mérito sobre muitos assuntos que me interessam. Quem quiser ler, lê, quem não quiser ler, não leia.
Não escrevo o blog a pedido de ninguém, não ganho dinheiro com ele e o blog sou eu só. Escrevo sobre o que gosto e sobre o que me preocupa, em parte porque me destressa; em parte porque muitos assuntos me interessam e parto do princípio que talvez interessem também a outros e ainda porque acredito que devemos ter uma voz activa, se pudermos, em vez de sermos passivos e aceitar o 'status quo'.
Quem gosta do que partilho e acha que tem mérito, lê, quem não gosta ou acha que não tenho mérito, não lê. Agora, não escrevo para agradar aos que só conseguem ler 50 palavras de cada vez.